06 outubro 2021

Menu-lunação: Libra


                 O encontro da Lua com o Sol? Quedê tão escondido? Em todo o Céu quase só vemos, ali no Ascendente, Vênus, a pequena benéfica, exilada no signo da sobrevivência. A carne perfumada do corpo da Vênus está ajustada na armadura do escorpião. Ainda assim, é a devota Vênus e, porque situada na casa 1, dirige ao corpo sua devoção. Dali, quadra Júpiter, quadra Saturno.

        Júpiter tem o poder de aliviar o malefício de Saturno. Aqui Júpiter está em Aquário e portanto sob a batuta de Saturno. Tal equilíbrio tempera um tanto o pensamento dualista, não? A ideia de tudo muito fértil e perene não cabe nem fisicamente no mundo. As coisas têm que acabar para dar lugar a novas. Mesmo as ideias, dentro de nós. Sim, Aquário é um signo que as abriga e conserva mas, cá entre nós, e apenas uma ideia pode se fixar tal qual: a única certeza é a morte. Clichezão sim, como convém ao signo de Saturno, frases repetidas ad eternum. Ao clichê acrescentam os mais jupiterianos: a consciência do fim dá sentido à vida.

        Vênus, que ascende, tão pertinho da Fortuna, enfatiza a beleza desses processos, de finais e de passagem da vida; um tipo de beleza exilada da nossa cultura, que vem intrincada com a melancolia da passagem do tempo, a melancolia do envelhecimento e das prisões (não só temporais quanto também espaciais e emocionais).

        Existe uma expressão que designa esse sentimento, e é tão antiga que vem lá da casa 4, que tem a capacidade de unir os grandes, benéfico e maléfico e, sim, uma expressão tão antiga e cheia de nuances e riquezas, que mesmo Mercúrio, e mesmo em trígono, tem dificuldade de nos explicar:


        wabi sabi


        “No dicionário Nihon kokugo daijiten (Grande dicionário de língua japonesa), encontramos as seguintes acepções para o verbete wabi - わび ou às vezes 侘, proveniente do verbo wabiru:

- Sentir-se solitário, miserável, desapontado; sentir-se sem ânimo;

- Apreciar a vida reclusa e tranquila, longe das coisas mundanas;

- Sentimento encontrado na refinada tranquilidade presente nas poesias haikai e cerimônia do chá; sentimento melancólico e tranquilo na simplicidade;

- Pedir desculpas. 


        Para sabi - さび, que também pode ser escrito da forma 寂, o Dicionário kōjirin registra os seguintes significados:

- Velho e elegante. 

- Sentimento de refinada tranquilidade. 

- Tipo de narração realizada a voz grave, forte e tremida. 

- Conceito básico existente na poesia haikai de Bashō.” [1]


CASA 12

        Os luminares se encontram na casa 12, onde o velho Saturno tem seu júbilo. Saturno é o titã filho de Urano que, como seus irmãos, foi impedido de nascer. A prole de Urano ficava aprisionada no ventre da mãe, até que, exausta, ela propôs que eles colocassem um fim na situação. O único que respondeu ao chamado materno foi Saturno, que fez tocaia armado da foice forjada por ela e, quando o pai chegou a penetrá-la, Saturno o decepou, castrando-o e libertando todos os filhos. Permeia a casa 12 a sensação da prisão no ventre, ou ainda, a sensação de prisão em geral, e mesmo a prisão de fato, do corpo, são representadas por configurações com a casa 12. Paranoias, vícios, autossabotagem, cárceres de todos os tipos, mesmo os voluntários como claustros monásticos.

        A maneira sorrateira como agiu Saturno também tem relação com alguns dos exemplos: a paranoia, o vício e a autossabotagem agem sorrateiramente.

        Saturno não tem pressa, ele é o senhor do Tempo e, como tal, também é associado aos fins e à tristeza decorrente.


        Wabi sabi é uma estética que não tem aversão às qualidades saturninas, ao contrário. Se tudo muda para dar lugar a um novo ciclo, o fim daquela forma é necessário; a qualidade do processo daquele ciclo dá lastro e qualidade do próximo. Assim, as marcas do tempo são exaltadas, como Saturno é exaltado pelos planetas quando estão no signo de Libra. A beleza melancólica das cicatrizes, da lasca da cerâmica, dos fios brancos nas pessoas; mas também as passagens que consideramos agradáveis, como o perfume das flores dos limoeiros (os cítricos estão florescendo neste exato momento), isso tudo é sublime. Retomando o texto anterior:

        “O que surpreende é a disparidade dos significados encontrados, que podem representar elementos contrários, como “algo miserável” e ‘refinada tranquilidade’; ‘velho e elegante’ e ‘algo enferrujado’[2]. Todavia, é precisamente essa ambivalência que torna as palavras complexas e, ao mesmo tempo, intrigantes.

        Em relação a sabi, encontramos a definição do especialista em nō e kyōgen Horikoshi Zentarō: “uma beleza que é sentida naturalmente, imbuída de algo fértil e profundo no seio da tristeza”. O autor salienta, todavia, que não se trata do simples “entristecer” ou do “envelhecer”, mas das coisas tristes e tranquilas que se tornam mais calmas ainda e das coisas velhas que definham mais ainda, em cujo processo surge algo rico, amplo e belo. Horikoshi esclarece também que é um pensamento que pode parecer paradoxal, mas é uma beleza de estrutura dupla e opositiva. Tracy Cooper explora esse tema em seu artigo “The wabi sabi way: antidote for a dualistic culture?”. Na realidade, a cultura japonesa, denominada como a do cinza por muitos estudiosos, não determina oposições binárias entre o preto e o branco, mas estabelece uma zona acinzentada entre as duas cores, criando um espaço intermediário onde A pode ser também não A.”

        

CRÉC

        Mas as coisas também quebram. 

        Os luminares passaram por um aspecto com Saturno, o grande maléfico e agora encontram Marte, o pequeno. À certeza do fim soma-se o flagrante de que o fim pode ser repentino.

        Marte está exilado no signo da Vênus, que levou emprestada sua armadura. E assim vulnerável é submetido à combustão, pela proximidade do Sol. Muito em breve ele chegará ao coração do Sol e ali vai se purificar[3], mas não sem antes machucar seriamente a Lua.

        Mercúrio também está combusto e anda para trás em direção aos coléricos debilitados e à Lua. Mercúrio, mimético, toma o temperamento e características fortes do planeta muito próximo. Ou, dos planetas, no plural, como no caso. Aqui, ele veste as penas do corvo, pois Algorab [4] , a estrela fixa sobre a qual estão os luminares e Marte, é indicadora de augúrios, e a função de mensageiro é do Mercúrio.

        Na oculta casa 12 é difícil falar abertamente, também é difícil definir as coisas com clareza, é necessário “um entendimento mais intuitivo e perceptivo do que racional e lógico”.[5]

            

        A presença de Marte combusto deixa clara a possibilidade de uma quebra, mais do que a melancolia da passagem do tempo. Aquela cumbuca de cerâmica que deslizou da sua mão, quicou duas vezes no chão, então bateu num ângulo sensível e se partiu. Você chegou a ver tudo em câmera lenta, só sentindo retumbar a taquicardia.

        Frente a esses cacos, desenvolveu-se, dentro do wabi sabi, uma técnica chamada kintsugi, em que os cacos são colados, restaurando a peça, e suas emendas, ao invés de serem disfarçadas, são cobertas com ouro, ganhando destaque. “As peças restauradas se tornam símbolo de fragilidade, força e beleza”, afirma o restaurador Hiroki Kiyokawa neste vídeo.[6] Além do ouro, a a resina também é preciosa pois sua extração extingue a vida da árvore Urushi.

        A motivação wabi sabi da técnica do kintsugi, que leva a restaurar peças quebradas não é o apego, e sim o respeito aos ciclos e à natureza, e isso se mostra na redução do consumo. Reparar as peças ao invés de descartá-las.

        Assim como a Vênus em Escorpião, a resina que une tem um componente venenoso. 

        Agora a gente sabe que a Fortuna que está com Vênus são às cicatrizes afinal o quebradeiro Marte logo estará banhado em ouro do Sol.


 

COMIDAS QUEBRADAS

        Cada um terá seu exemplo pessoal de um prato “quebrou” e a solução ficou ainda melhor do que era antes. Talvez alguma restrição alimentar foi o que te levou a um kintsugi, talvez você tenha se mudado e não encontra mais aquele ingrediente. Aqui em casa acontecem muitas rupturas, e muitas delas de pratos que perdi quando veganizei a cozinha. Agora são jóias.

        Por exemplo os legumes recheados. Desde que comecei a cozinhar tenho fetiche por comida mediterrânea. Comecei com a espanhola, passei pela grega, e sempre por ali o legume recheado, vistoso, divertido, genial.

        Há pouco tempo que os retomei.. 

        Com o recheio de carne moída, o legume-recipiente fica molengoso, especialmente no contraste com a textura da carne. A carne sempre será mais pesada por causa das fibras. Mesmo que o recheio fosse acrescentado pronto, com o tempo de forno sendo reduzido ao cozimento do legume-recipiente, ainda assim o legume parece se resumir ao aspecto visual. Até que um dia ganhei um pacotinho congelado de pinhão cozido, descascado e cortado em cubinhos. Com esse presente recheei essa lindona:

http://www.dodocozinha.com.br/2018/09/berinjela-sagitariana.html


        Hoje, com a descoberta das migas, aquelas do menu da lunação de Sagitário, ficou melhor ainda. As migas, inclusive, podem ser temperadas — e podem ser de tamanhos e formatos diferentes, resultando em novos resultados — e por isso são mais versáteis e interessantes. Para o dia de saudade do parmesão, já existem simulacros satisfatórios no mercado, mas o leque de coberturinhas crocantes foi aberto e não faz sentido fechá-lo.

        Apesar de alguns pratos ainda estarem quebrados, como o acarajé, a moqueca ganhou seu ouro com o palmito fresco. O palmito fresco assado tem um adocicado que encaixa com perfeição ao do azeite de dendê, talvez por serem ambos da mesma família. Tem gente que coloca umas algas no meio pra dar o cheirinho de água mas, sinceramente, amo o telúrico da moqueca kintsugi e inclusive numa experiência com wakame acabei catando as alguinhas e comendo tudo separado.

 http://www.dodocozinha.com.br/2019/09/quadratura-virgem-sagitario-e-moqueca.html

        


        

        E a quiche, esse amor da vida? Essa peça eu vi quicando e quebrando com dor no coração. Então, o milho chegou e mostrou o que é ser um senhor grão riquíssimo em amido. Fiz essa receita muitas vezes em muito pouco tempo, viciada!

http://www.dodocozinha.com.br/2020/09/quiche-de-falta-da-lua-em-gemeos.html



        No caso desse brownie, o ouro é invisível, porque ele não é melhor que não tem sabor nem textura melhor que os outros, as qualidades sensoriais são as mesmas. O ouro dele vem do fato de sua existência não agredir outros seres ou a natureza. 

http://www.dodocozinha.com.br/2016/04/brownie-vegano-do-jamie-oliver-em.html

foto: Lidia Ueta


MENU

        Cada um tem sua história e essa é parte da beleza wabi sabi

        Assim, como menu proponho que você olhe para aquela comida boa demais que você não pode mais comer, seja por restrição, por falta de receita. E assuma a falta. Se quiser, ajudo a procurar uma solução.

        Se você quiser, ficam as sugestões anteriores, com receitas nos links. E mais quatro sugestões:

        1

Que tal servir naquele prato que tá velhinho, meio riscado, relegado ao cantinho do armário? Aquele riscadinho, meio encardido, que já participou de tantas refeições? Ah, se minha cerâmica falasse…

        2

Morangos:

        “Um dia, andando na selva, um homem encontrou um tigre feroz. Ele correu para salvar sua vida, perseguido pelo tigre. O homem chegou à beira de um precipício, e o tigre estava quase alcançando-o. Sem opção, ele se agarrou a uma parreira com suas duas mãos, e desceu.

        No meio do precipício, olhou para cima e viu o tigre no topo, arreganhando os dentes. Ele olhou para baixo, e viu outro tigre, rugindo e esperando sua chegada. E ficou preso entre os dois.

        Em seguida, apareceram dois ratos sobre o precipício, um branco e outro preto. Como se ele não tivesse com preocupações suficientes, os ratos começaram a roer a parreira.

        Sabia que se os ratos continuassem a roer, chegaria um ponto em que a parreira não poderia suportar seu peso, causando sua queda. Tentou espantar os ratos, mas eles voltavam e continuavam a roer.

        Neste momento, ele observou um morangueiro crescendo na parede do precipício, não muito longe dele. Os morangos pareciam grandes e maduros. Segurando-se na parreira com apenas uma das mãos, com a outra colheu um morango.

        Com um tigre acima, outro abaixo, e com os ratos continuando a roer a parreira, o homem comeu o morango e achou-o absolutamente delicioso.”[7]

        Isso é wabi sabi.

        3

Uma flor da estação sobre a mesa: "Then too, when food is served, a leaf or flower of the season is usually placed as a decoration and reminder that everything has its season and that they must be appreciated. The passing of the seasons is a recurrent theme in wabi sabi expressions, and they are often used to provoke emotional responses. In addition to their love of obscurity, the Japanese also tend to keep their emotions fairly well concealed."[8]

        4

 Sirva uma comida quebrada. Massimo Bottura serve em seu restaurante uma sobremesa chamada 'Oops! Mi è caduta la crostata al limone' ('Ops! Derrubei a torta de limão.'), cuja história começa assim:

        "Takahiko, já cansado, abriu a porta da geladeira das sobremesas e, com alívio, viu as duas últimas fatias de torta, esperando para serem saboreadas. Ao retirar as tortas, entretanto, o inesperado se fez presente. Uma fatia foi cuidadosamente colocada sobre o prato de sobremesa, mas a segunda, misteriosamente, caiu das mãos habitualmente firmes do samurai…[9]



NOTAS

[1] Michiko Okano. A estética wabi sabi: complexidade e ambiguidade. 

[2] “A mesma palavra sabi, com outro ideograma (錆), pode ser relacionada pelo som à palavra que designa ferrugem”. O que se assemelha ao Marte debilitado em um signo úmido. 

[3] Marte estará cazimi, ou seja, se colocará na frente do Sol e é como se ele mesmo se tornasse a fonte de luz. O fenômeno acontece entre 3.36h da madrugada do dia 07.out e 21.29h do dia 08.out, tendo seu aspecto exatíssimo às 0.29h do dia 08.


[4] Sobre a estrela fixa Algorab, da constelação do Corvo: https://www.constellationsofwords.com/algorab/

[5] “[wabi e sabi] representam conceitos que são quase totalmente dependentes do contexto” e “o nosso entendimento [japonês] é mais intuitivo e perceptivo do que racional e lógico”

        Há alguns fatores essenciais para se ponderar no estudo dos supostos “conceitos” japoneses: um deles é o fato de a maioria desses “conceitos” ter sido inventada ou reinventada na Era Meiji, quando houve a ocidentalização japonesa e o enquadramento lógico do que era bom senso, ideia ou pensamento. Outro aspecto a considerar é a ausência de uma definição clara e exata dos termos, uma vez que estes possuem, como um caleidoscópio, semânticas múltiplas, dependendo da “relação” a ser estabelecida. É a relevância desse encadeamento contextual que faz que os japoneses elaborem, por exemplo, uma lista dos locais mais bonitos para se apreciar a lua, combinando o lugar (a montanha, o céu, a praia, a rocha etc.) com o objeto.” 

Michiko Okano


[6] kin = dourado 

kintsugi = juntar com ouro


Existem alguns vídeos disponíveis com o processo completo, os que sequem abaixo tratam da filosofia:

 https://www.youtube.com/watch?v=r9LMKGte0UU 

https://www.youtube.com/watch?v=EBUTQkaSSTY


[7] por: Derek Lin, em https://universomistico.org.br/vivendo-o-tao-vivendo-o-momento/

Calvin e Haroldo por Bill Watterson

[8] Andrew Juniper. Wabi Sabi: The Japanese Art of Impermanence

[9] Massimo Bottura conta em https://www.youtube.com/watch?v=XAizxrBpUVA&t=137s


[texto enviado na data da lunação para apoiadores, publicado aqui em 23/02/25]


        

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