06 setembro 2021

Menu-lunação: Virgem

Berinjela marinada 

Macarrão de arroz com acelga e rabanete 

Bolinhos de inhame com nori 

Cogumelo shitake sauté 

Bananas grelhadas


“Não jogue ao acaso a água que lavou o arroz.” Mestre Dôgen [1]


        A lunação de Virgem começa com Touro no ascendente: os pés na terra, o corpo ciente dela, os olhões calmos, a constância, e aqui enfatizo a constância no trabalho, nos fazeres.

        Vênus, planeta regente de Touro, está na casa 6, a casa do trabalho-porre, o trabalho invisível e maçante. A disciplina também podemos colocar aqui, já que a casa 6 é o júbilo de Marte, o soldado.

        Agora você vê, Vênus em Libra, que é seu domicílio, e também Mercúrio em Libra. Mercúrio é o regente da lunação — pois é o regente de Virgem.

        Enquanto Vênus e Mercúrio estão na casa de júbilo de Marte, ele mesmo está na casa 5, casa do júbilo da Vênus, que é onde acontece o encontro da Lua com o Sol.

        Achei bonito um estar na casa de júbilo do outro: um Marte seco, num signo seco, exato, pontudo, afiado, combusto, numa casa de fertilidade e prazer. E Vênus em seu domicílio quente e úmido, numa casa de franco desprazer. Nem oito, nem oitenta, nem luz, nem sombra; a paleta vai se renovando em novas nuances e nós, sob este céu, seguimos buscando prazer no desprazer, liberdade nos perrengues cotidianos. “Disciplina é liberdade. Compaixão é fortaleza”, disse o mestre.[2]


HARMONIA

        Fácil não é. 

        É simples. 

        E é bem possível. Vênus, regente do Ascendente, está domiciliada portanto de posse de suas habilidades benéficas, e exalta Saturno, que também está confortável, domiciliado em Aquário. Saturno, por sua vez, impõe a paciência, as restrições, traz as qualidades do osso, do que é necessário para estruturar.

        Virgem, signo da lunação, também tende à síntese. Como enxergar e dominar os processos se eles estiverem cheios de penduricalhos? Ainda, como trabalhar e servir se seu espírito estiver cheio de penduricalhos e vaidades? A casa 6, oculta, não é um lugar de vaidades, e é assim que Vênus tempera o Ascendente do mapa.

        “Criatividade e ego não combinam. Se você se libertar da comparação e da mente invejosa, sua criatividade se abre infinitamente. Como a água que jorra da fonte, a criatividade brota de cada momento.” (Jeong Kwan)


TOURO NO ASCENDENTE

        O corpo é o presente. Nos dois sentidos. É uma dádiva. E é o que nos ajuda na busca da presença. Na cozinha é bem clara a relação dos nossos sentidos com a comida, e também na consideração sobre o que nutre nosso corpo, o que faz a gente se sentir bem. [3]


UM DIA NA COZINHA

        Chanyuan Qinggui disse: 

        “A função do Tenzo é a de se ocupar da comida dos monges. 

        (...) 

        Eu gostaria de descrever agora o trabalho do Tenzo durante um dia inteiro. Após a refeição do meio dia, o Tenzo deve ir ver o tsusu e o kansu para receber o arroz os legumes e outros ingredientes para o café da manhã e o almoço do dia seguinte . Quando os recebe, ele deve dedicar-lhes tanta atenção como se fossem as pupilas de seus próprios olhos. Renyong de Baoheng disse: ‘Trate os bens e as possessões da comunidade como se fossem seus próprios olhos.’ O Tenzo deveria manusear todo alimento recebido com esse mesmo respeito, como se ele fosse preparar uma refeição para o Imperador, seja alimento cru ou cozido.

        Em seguida, todos os responsáveis se reúnem na cozinha, ou em um anexo, para decidir qual a comida a ser preparada para o dia seguinte, por exemplo, qual o tipo de sopa de arroz, quais os legumes, quais os acompanhamentos. Diz-se no Chanyuan Qinggui: ‘O Tenzo deve consultar os outros responsáveis quando ele decide a quantidade de comida e sua apresentação, necessárias para as duas refeições. São eles o tsusu e o kansu, e quando estes pratos estiverem escolhidos, o menu deve ser afixado nos murais, em frente ao quarto do superior e na sala de estudos.’ Quando isso estiver feito, é preciso começar os preparativos para o café da manhã do dia seguinte. Não deixe o trabalho de lavar o arroz ou de arrumar os legumes aos outros, mas faça isso com suas próprias mãos. Coloque toda a sua atenção neste trabalho, permanecendo vigilante ao conjunto da situação. Não deixe seu espírito vagar, mas não fique por demais absorto por um dos aspectos da tarefa, a ponto de esquecer os outros. Não desperdice nem uma gota do oceano de virtudes confiando este trabalho a outros. Cultive um espírito que procura aumentar a fonte do bem, sobre a montanha do bem. O Chanyuan Qinggui prossegue: ‘Se o Tenzo oferece uma refeição que não contém os seis sabores e as três qualidades não se pode dizer que ele serve à comunidade.’

        (...)

        Quando o Tenzo recebe do kusu a comida, ele não deve jamais se lamentar da quantidade nem da qualidade – mas sempre tratá-la com o maior respeito. Nada é pior do que se lamentar porque há demais ou não há suficiente de alguma coisa, ou de criticar a qualidade do que nos é dado. De noite e de dia, permita que todas as coisas venham e residam na sua mente. Permita que sua mente e todas as coisas funcionem em harmonia, como um todo. Antes da meia noite, dirija sua atenção para organizar o trabalho do dia seguinte; depois da meia noite comece o trabalho para a refeição matinal. Após o café da manhã, lave as panelas e cozinhe o arroz e a sopa do almoço. Enquanto o arroz é colocado de molho e se mede a água, o Tenzo deve estar presente, em frente à pia. Mantenha seus olhos abertos. Não permita que um só grão de arroz seja perdido. Lave cuidadosamente o arroz, coloque-o na panela, coloque a panela no fogo e cozinhe-o. É dito: ‘Que a panela seja como vossa própria cabeça, que a água seja como vosso próprio sangue.’ Arrume o arroz cozido, no verão numa bacia de bambu, no inverno em um recipiente de madeira, e leve-o à mesa. Cozinhe ao mesmo tempo a sopa e todos os pratos de acompanhamento. O Tenzo deve estar presente quando a sopa e o arroz cozinham. Isto é verdadeiro para todos os casos, quer o Tenzo faça o trabalho ele mesmo ou quer os seus assistentes ajudem no cozimento ou a manter o fogo. Mesmo se nos grandes monastérios são outras pessoas que fazem o trabalho de cozinhar o arroz ou a sopa, o Tenzo não deve esquecer que eles são apenas assistentes trabalhando para ele, e que eles não podem ser considerados responsáveis por este trabalho. Antigamente o Tenzo se ocupava de tudo, ele não tinha assistentes.”

        

OS DOIS OLHOS DO CÉU EM VIRGEM

        “Quando você prepara a comida, não olhe os ingredientes da mesma maneira que as pessoas comuns, e não leve em conta somente os seus sentimentos pessoais. Que sua atitude seja aquela da pessoa que deseja construir um grande templo a partir de legumes comuns, ou que tenta explicar o Darma do Buda através das atividades mais insignificantes. Quando você faz uma sopa com legumes comuns, não se deixe levar por sentimentos de aversão a eles, nem os considere com desprezo, tampouco salte de alegria somente porque lhe deram ingredientes de qualidade superior para preparar um prato especial. Do mesmo modo, que você não abusa de um prato porque ele é especialmente bom, não há razão para detestar um prato comum. Não seja negligente e desatento somente porque os ingredientes parecem comuns, e não pense que seria melhor trabalhar com coisas de boa qualidade. Sua atitude em relação às coisas não deveria variar segundo suas qualidades. Alguém que se deixa influenciar pela qualidade de uma coisa, ou que muda sua atitude, seu discurso e suas maneiras segundo a aparência ou a posição social das pessoas que encontra, não é um estudante do Caminho.”


MARTE EM VIRGEM

        “Reafirme sua resolução e consagre-se inteiramente a suplantar a obra dos antigos patriarcas, e a ser mesmo mais meticuloso do que aqueles que nos precederam. Como aplicar todas as nossas aspirações ao Caminho? Se os grandes mestres do passado puderam fazer uma sopa comestível com legumes miseráveis, tentemos realizar uma sopa deliciosa com estes mesmos legumes.”[4]

        A comida secular se concentra em criar energia dinâmica.

        Estaremos com Marte em Virgem assistindo o Ascendente, o que pode ser de grande ajuda para o corpo. Por outro lado, com Marte combusto, cuide para não se queimar nem se cortar com essa faca em trígono com o dedo. Disciplina é liberdade. [5]


SERVIR À COMUNIDADE NO MEIO DO CÉU

        O mito do signo de Aquário fala de Ganimedes, jovem pastor que foi cobiçado e raptado por Zeus e se tornou o copeiro do Olimpo. 

        Ganimedes, sempre que possível, manda um chorinho de ambrosia divina aqui para a humanidade, que ele só vê e serve de longe.

        “Este trabalho sempre foi realizado por praticantes avançados no Caminho, e por outros que queriam fazer nascer em seu interior o Espírito de Bodhisatva. Uma tal prática demanda toda nossa energia. Se a pessoa responsável por este cargo carece de um tal espírito, ela não fará mais do que suportar um trabalho pesado e sofrimentos que não a ajudarão a prosseguir no Caminho.

        O Chanyuan Qinggui completa: ‘Trabalhe com a mente Bodhi, a mente que procura a Iluminação, fazendo constantemente um esforço para servir refeições variadas, apropriadas às necessidades e circunstâncias, e que permitirão a todos praticar com os seus corpos e mentes, com o mínimo de obstáculos possíveis’.”

        A ambrosia que Ganimedes divide é associada ao conhecimento. É como se ele nos lançasse lampejos de conhecimento que a humanidade segue desenvolvendo: grandes obras de engenharia, como os antigos aquedutos, e tecnologias atuais, que permitem novas pontes, como as tecnologias de comunicação, por exemplo.

        Por uma dessas novas pontes [6] podemos ouvir a monja cozinheira Jeong Kwan. Num episódio de Chef’s Table ela conta da ambrosia do templo: 

        “O sabor é baseado no sal, pasta e molho de soja e pasta de pimenta. Esses ingredientes despertam a mente, mantêm a atenção.”


SATURNO DOMICILIADO E JÚPITER EM AQUÁRIO

        Aquário é um signo de temperamento quente e úmido. Está na casa 10, a casa da mãe e das autoridades. 

        O ambiente quente e úmido é perfeito para a fermentação.

        “O molho de soja me anima só de pensar nele. Toda comida é recriada pelo molho de soja. Grãos de soja, sal e água, em harmonia, ao longo do tempo. É a base dos temperos, o fundamento. Existem molhos envelhecidos por cinco, dez anos, por 100 anos. Esses tipos de molhos são passados de uma geração a outra. São uma herança de família.

        Se você se examinar, verá passado, presente e futuro. Vemos que o tempo gira sem parar. Dá pra distinguir o passado do presente. Ao olhar para mim mesma, vejo minha avó, minha mãe, as anciãs no templo e eu.” (Jeong Kwan)

        

MENU

ingrediente principal: presença

        “O importante a enfatizar é a presença, o estar completamente aqui, sem se sentir culpado por gostar disso. Isso pode ser mais facilmente alcançado em atividades que não exigem muito pensamento discursivo. Qualquer coisa que você consiga fazer sem pensar demais se transforma em um tipo perfeito de meditação, quer se trate de descascar amendoins, cuidar de um canteiro de flores, consertar uma cerca ou lavar louça.”[7]

        Acredito que o trabalho na cozinha facilita o exercício de presença porque envolve várias qualidades sensoriais que devem ser levadas em conta a cada tomada de decisão, ainda que pareçam automáticas: quanto óleo coloco na frigideira para fritar esses bolinhos? Porque, sinceramente, escrever um fio de óleo é muito mais poesia do que uma instrução precisa. Se o seu legume está mais macio, com a casca mais grossa, isso são características que fogem ao texto das receitas e cabe a quem cozinha executar o prato levando em conta a realidade que se apresenta.

        A monja Gyoku En cita os seis sabores que estão em harmonia em uma refeição bem executada.

        “Os seis sabores: amargo, ácido, doce, salgado, suave e picante. As três qualidades: leve e flexível, limpo e claro, consciencioso e completo. Esta última qualidade se diz em japonês “nyohô”. Este termo tem três sentidos: a) tudo o que existe, ou seja, todas as coisas e fenômenos. b) as leis naturais que se aplicam a todos os fenômenos existentes. c) o Budadarma, ou seja, a atividade profunda e estável que leva a uma maior profundidade, a uma maior estabilidade. Dito de outra forma, todas as coisas funcionando segundo o seu curso natural, de acordo com as leis naturais, de maneira firme e estável, são nyohô.” [8]

        Este será nosso ideal mas não temos pressa. Ninguém, nem acima nem cá embaixo, tem pressa[9]. Então vamos com respeito aos nossos tempos, aos nossos erros mas com dedicação verdadeira.

        O mapa mostra o Ascendente em signo fixo, os grandes errantes também em signo fixo bem no ponto mais alto do mapa mas quero que trabalhemos com olhar em modo mutável para a tabela que coloco em anexo. Que ela sirva como base de comparação com sua própria percepção. Não somos orientais e a cultura muda mesmo as percepções que julgamos tão naturais e óbvias. Por favor use a tabela com leveza mercurial e divirta-se.[10]

        De qualquer maneira, nem proponho que façamos agora uma refeição com todos os sabores e características, eu nem poderia. Comecemos do começo: você consegue ficar em silêncio? Desligar podcast, música ou outra distração? Você consegue lidar com seus pensamentos no silêncio? Essa é a parte mais difícil! A atenção e as decisões sobre o processo de cozinhar são um apoio para que você não se deixe levar pelos pensamentos. Se estiverem incomodando, deixe ali, considere-os como um vizinho que está falando alto. Pensamentos eufóricos, idem. A gente tem a impressão que se o sentimento é “”bom”” ele pode te engolir. Nem oito, nem oitenta, nem só luz, nem só sombra. Aquela imagem do Allan Watts: o caminho do meio olhado de cima. Simples e difícil. Se for muito desconfortável coloque uma música e fique de boa. Um passinho de touro primaveril de cada vez.

        Considero mais importante hoje a análise do que temos em mãos. Literalmente. Sinta com suas mãos o peso, a temperatura, a textura do ingrediente. Olhe sua cor, seu formato. Quando cortar um ingrediente, não deixe de considerar seu formato natural, otimize os cortes. E o aroma? Puxando aqui pro ponto de vista astrológico, o aroma parece indicar o temperamento. Então o sabor. Que também não é oito ou oitenta, luz e sombra, é uma composição. Na segunda relação dos sabores, a Sonia Hirsch coloca o agrião como exemplo de picante-doce. Realmente, como encaixar o agrião em um sabor só?

        O inhame, presente no nosso menu, também está classificado como picante-doce. 

        Você concorda? A tabela, aqui para nós, é mutável como Virgo, rabisque como quiser.

        Especificamente, na nossa refeição, é interessante comparar o picante do gengibre com o do rabanete (se você tiver um wasabi e quiser colocar na mesa Marte fica feliz); a suavidade do inhame com o do macarrão de arroz.

        O molho que tempera será o mesmo para todos os preparos. Com exceção da berinjela que é marinada nele, experimente-os antes sem os temperos fortes. O macarrão, tão delicado, parece abrir mão de si mesmo quando encontra um molho.

        Recomendo sempre, mas é especialmente muito pertinente à lunação de Virgem: use o que tiver disponível e bonito; o que for da estação, o que for da sua região. Eu cozinhei no vapor com a berinjela um pouco de abobrinha e de brócolis.

        Uma sugestão: 

        A gente começa elegendo um potinho ou um saquinho forte, que ficará no congelador recebendo talinhos de salsinha, casca de cebola, nozinhos de salsão e todas as pontinhas e partes que não vão para o preparo mas servirão na composição de um fundo saboroso. Ainda que não usemos fundo nesse menu, seus cozidos, molhos e risotos do futuro agradecerão.


NOTAS

[1] 


[2] trecho da música Há tempos, Legião Urbana. A composição é de Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos  

[3] mais sobre o signo de Touro, onde pincelei várias dessas questões

        O Corpo é o Presente

        Estamos na Primavera mítica. Os brotos crescem e exibem galhos e flores no intuito de seduzir insetos polinizadores, garantindo a manutenção da vida. Nós, depois de uma boa refeição ao ar livre, permanecemos à mesa ou arredores, sem maiores ambições do que admirar as cores das plantas, a movimentação dos insetos. É tempo e casa de Vênus.

        O auge da primavera é representado na eclíptica do zodíaco por um touro branco como a Lua, muito macio, de respiração morna e regular. Confortável e sólido, Touro é um signo de natureza receptiva, fria. Tem por regentes os dois planetas considerados femininos pela Astrologia: a Vênus e a Lua.

        Mesmo que de qualidade feminina fria, a gente pode contar sim com o calor. Marte é um dos regentes da triplicidade do elemento Terra, a que Touro pertence. Marte guerreiro que também é força de trabalho, disciplina e constância. Manílio coloca que o Touro oferece seu pescoço ao jugo (Manilio apud Fernandes, 2006). Tem força, tem persistência e ritmo! E conhece a terra pedregosa e seca que tem que trabalhar, afinal é um signo de natureza melancólica.

        Touro trabalha na hora do trabalho. E então desfruta. 

        A gente tem uma sensação física disso tudo. Verdade. Touro é físico. Fixo físico.

        Se alguém tem que cuidar desse corpo, que sejam Vênus e Lua, seus planetas regentes. Nosso corpo é um tesouro.

        Do trabalho invisível e constante do touro no arado podemos pensar na manipulação do alimento cultivado: o trabalho invisível, constante e feminino da cozinha. O cuidado com a alimentação como manutenção do corpo, mas também com a nutrição afetiva, a atenção sensorial que pode ser bastante sutil. Aveni lembra que a Vênus “era o poder que atraia sexos um para o outro - calma, pacífica e plácida - com um efeito satisfatório”. Na cozinha a gente pode pensar no poder que atrai o corpo de um ingrediente a outro — ou a vários outros, pois aqui a promiscuidade não só é permitida como incentivada — com um efeito satisfatório.

        Michael Pollan (2014) coloca a diferença — grosso modo — entre o preparo da comida de modo masculino, normalmente um churrasco, que tem um caráter de espetáculo, com o fogo, as pessoas ao seu redor, o espetáculo do animal abatido, muitas vezes inteiro, temperado só com sal; e de outro lado o preparo feminino que costuma acontecer dentro da cozinha, no dia a dia, picando enfadonha e solitariamente os ingredientes e cuidando de uma panela que costuma cozinhar — tampada — em fogo brando. Ou, como em francês, em fogo doce.

        Taurinamente esse preparo não precisa ser enfadonho. A presença que a imobilidade taurina pode proporcionar é algo que procuramos há milênios através de técnicas como a meditação. Estar presente no ato da cozinha permite acessar uma riqueza sensorial que integra na atmosfera o ambiente e os ingredientes, na qual tudo conta: o frescor do som da água da torneira, a brisa que entra pela janela…

        Talvez, para quem está sendo cutucado por Marte, Mercúrio, Saturno, com outros assuntos na mente, o tempo marcado para servir uma refeição no dia a dia, essa riqueza da prática culinária passe despercebida; mas apelemos à Lua! Quem nunca teve um momento de provar uma comida, ou sentir um cheiro que o transportou no tempo para algum momento em que, ainda borreguinho de gente, estava ali na cozinha enquanto a mãe cozinhava, e se lembra direitinho – e nem sabia que lembrava!, tanto daqueles sabores, cheiros (não só da comida), dos movimentos do corpo dela, do cabelo dela, da luz que entrava. Alguma pecinha pode trazer isso tudo à tona.

        Pollan coloca que em geral temos passado tanto tempo em frente a programas de culinária (mesmo quem não cozinha) porque o ato de cozinhar envolve coisas das quais sentimos muita falta. E traz o seguinte:

        A comida é apreendida por meio do tato, do olfato e do paladar (...) que na hierarquia dos sentidos se encontram abaixo da visão e da audição, normalmente associadas ao acesso e ao conhecimento. Na filosofia, na religião e na literatura, a comida é quase sempre vinculada ao corpo, ao animal, à fêmea e ao apetite, coisas que os homens civilizados procuraram superar por meio do conhecimento e da razão. (Flamming, 2009 apud Pollan, 2014, p.18)

        Vênus jamais deixaria de considerar esses sentidos. A gente tem um corpo inteirinho para usar, para cuidar, para mover, para sentir tato. Os regentes da triplicidade da terra nos lembram muito bem: Vênus, Lua, Marte: sexo, carinho, guerra — o vislumbre do fim, dizem, dá outra percepção sobre tudo.

        E assim, cada um com seu corpo, seu caminho e sua história, constrói um vocabulário totalmente pessoal sobre os alimentos e percebe cada comida de um jeito muito diferente. Isso, de novo, é coisa da Lua. Vou além: cada um com seu caminho, sua história e seu temperamento tem uma relação totalmente pessoal sobre os quatro elementos, fogo e água, terra e ar; e isso também se revela na preferência por certos tipos de preparos.

        O modo como cada comensal recebe o alimento nutre o seu corpo, e também a cultura coletiva. Pois é em movimentos mansos e cotidianos que a cultura culinária expressa as suas mudanças mais sutis. Sem pressa, curtindo o pasto, o calor do raio de sol na cara, a cama e a mesa.

        A mesa é o momento venusiano ao qual todo esse preparo converge: a união, a conversação e a amizade. Nutrir-se, de alimento e de afetos. 

        Terminada a refeição, aqui estamos a admirar as flores e os insetos.

        Ingerido, o alimento segue influenciando nosso corpo e nossos humores. Alguns alimentos dão uma preguiça digna de Marte exilado. Outros despertam desejos libidinosos e por isso ganharam o nome derivado de um dos nomes da própria Vênus, que em Touro tem seu domicílio noturno. O efeito afrodisíaco pode ser motivado por associações culturais, já que muitas vezes são considerados afrodisíacos por outras qualidades que não seus valores nutricionais. Um dos convivas conta que o tomate, quando foi levado para a Europa, era considerado escandaloso por conta do seu vermelho quente, da polpa suculenta que se mostra depois de partida a casca — normalmente num estalinho depois da pequena resistência — e ao final a língua encontra as cavidades com sementinhas e suco que não raro escorre pelo queixo. Um tomate oferece bastantes estímulos aos sentidos, mas mais do que isso: a fantasia a respeito da sua terra de origem, o selvagem e livre novo continente, também funciona como um estímulo à falta de pudor.

        A fantasia e as memórias são indispensáveis. Os sentidos ganham significados emocionais relacionados com o contexto em que sentimos, por exemplo, um cheiro novo. E esses significados lunares são acionados muito rapidamente quando o sentimos de novo, mesmo que não tenhamos consciência.

        Por isso, apesar do conhecimento racional a respeito dos nutrientes dos alimentos e seus efeitos no corpo, em Touro os amantes sabem que o melhor afrodisíaco é resultado da entrega e atenção que se dá ao alimento, ao ambiente e à companhia. Sem pressa. Sentindo os diferentes aromas do corpo do parceiro, deixando sua voz soar como música, permitindo o surgimento de uma música nova criada em conjunto.

        As flores também fazem isso: duas flores que se gostam geram um perfil de aroma único quando se tocam e sentem uma à outra, e quando separadas cada uma volta ao seu normal.

        É primavera. 

        Que aromas você sente agora, e do que eles te lembram?


        por Aline Higa. na revista Cazimi. Ed. Pogo, 2019


[4] este trecho e os anteriores do texto de Eihei Dogen: Tenzo Kyôkun, disponível em https://aguasdacompaixao.files.wordpress.com/2008/01/dogen-eiheishingi-tenzokyo kun-instrucoesparaocozinheirochefe.pdf

[5] Não consigo ouvir essa frase e não me lembrar da animação The dot and the line: A Romance in Lower Mathematics, com a qual Chuck Jones (virginiano de Sol e Mercúrio) ganhou o Oscar de 1965 https://www.youtube.com/watch?v=D_QhIVYlcmE

[6] um “atalho para a ponte” neste link 

[7] trecho de orelha do livro O que é zen?, de Allan Watts 

[8] monja Gyoku En. O Zen na cozinha: princípios da culinária Shôjin. SP: CLA, 2008 

[9] WATTS, Allan. O que é zen? Campinas: Verus, 2009 

        “Lembro-me de jantar com Hasegawa, em que um dos presentes lhe perguntou: 

        — Quanto tempo leva para compreender o zen?

        Ele respondeu: 

        — Pode levar três minutos; pode levar trinta anos. E estou falando sério — completou.

        São esses três minutos que atormentam as pessoas! Nós, do Ocidente, queremos resultados imediatos — e um dos problemas desse tipo de resultado é que, às vezes, ele é de má qualidade. Costumo dizer que o café instantâneo é o castigo das pessoas apressadas demais para fazer café de verdade! Não há motivo para sermos apressados.

        Há dois lados nessa questão, que encaro da seguinte maneira — não é de forma alguma uma questão de tempo. As pessoas que defendem a demora pertencem a uma escola de pensamento, as que querem tudo rápido pertencem a outra, e estão todas erradas. A transformação da consciência não tem nada a ver com o tempo gasto no processo, como se se tratasse de uma escada quantitativa e você fosse recompensado pelo esforço despendido. Também não se trata de evitar o esforço só porque você está com preguiça ou insiste: ‘Quero agora!’

        O ponto é mais ou menos este — se você tentar alcançá-lo por um método instantâneo porque está com preguiça, ou por um método longo porque é meticuloso, descobrirá que não vai alcançá-lo por nenhum dos dois caminhos. A única coisa que o esforço — ou a ausência dele — lhe ensinará é que o esforço não funciona.

        A resposta está no caminho do meio — e o budismo é justamente chamado de ‘o caminho do meio’ —, o que, entretanto, não constitui nenhum tipo de concessão. ‘Meio’, aqui, significa ‘acima e além dos extremos’.

[10] HIRSCH, Sonia. Manual do Herói — ou a filosofia chinesa na cozinha. RJ: Correcotia, 2009

Este livro coloca cinco sabores, enquanto o da monja Gyoku En nos traz seis. O zen-budismo tem raiz no taoísmo, de onde a Sonia Hirsch busca essas informações, então não há contradição, apenas o flagrante de que o conhecimento é mutável.


Menu-lunação Virgem 

Berinjela marinada 

Macarrão de arroz com acelga e rabanete 

Bolinhos de inhame com nori 

Cogumelo shitake sauté 

Bananas grelhadas


BERINJELA MARINADA

Corte as berinjelas pela metade, longitudinalmente. 

Faça na casca cortes rasos formando losangos.

Proponho uma marinada um pouco diferente, mas se o molho da página te agradar mais, vá nele.

Prepare uma panela de cozimento ao vapor e coloque para cozinhar as berinjelas. 

Cozinhe por 10 minutos. Enquanto isso, prepare o molhinho, de preferência em um pote retangular com tampa:

2cS vinagre de arroz 

4 cS óleo vegetal 

2 cc óleo de gergelim torrado 

1 pitada de glutamato monossódico (opcional) 

2 cc açúcar 

8cS shoyu 

1cS gengibre ralado (ou picadinho) 

cebolinha em rodelas fininhas


Quando a berinjela estiver cozida, acomode no molho. Fica melhor no dia seguinte. Vire as berinjelas para que pegue a marinada nos dois lados. 

Mantenha na geladeira.


MACARRÃO DE ARROZ COM RABANETE E ACELGA

2 rabanetes 

2 folhas de acelga 

macarrão de arroz (tipo vermicelli)


Corte o rabanete em lâminas. Salgue e massageie. Reserve. 

Faça o mesmo com a acelga.

Coloque água para ferver e cozinhe nela o macarrão. Ele cozinha bem rápido, siga o tempo indicado no pacote. 

Escorra o macarrão. 

Esprema bem o rabanete, para que saia a água salgada. Experimente um. Se ainda ficou salgadão, lave e esprema novamente. 

Faça o mesmo com a acelga. 

Espalhe sobre o macarrão.

Primeiro experimente assim, sem os temperos fortes. No decorrer da refeição ele será temperado com o molhinho da berinjela.


BOLINHOS DE INHAME

baseado na receita de bolinhos de cará fritos, da monja Gyoku En

180g de inhame (escolha os menores) 

1 folha de nori 

óleo vegetal para fritura 


Cozinhe o inhame inteiro com casca. Quando estiverem macios, retire da água e deixe esfriar apenas para que não queime seus dedos. Então descasque e amasse com um garfo. Agora sim deixe esfriar.

Faça com as mãos 12 bolinhos pequenos. 

Corte a folha de nori em 12 tiras e enrole cada bolinho com uma delas. Não ficarão totalmente cobertos, apenas com uma cinta. 

Aqueça uma frigideira e aqueça nela um fio de óleo. Frite então os bolinhos. 

Sirva imediatamente acompanhado do molho da berinjela.


COGUMELO SHITAKE SAUTÉ

pela monja Gyoku En

1 cc óleo vegetal 

12 shitakes de tamanho médio 

1 cS saquê mirin 

1 cS shoyu


Os shitakes podem ser frescos ou desidratados, caso em que é necessário reconstituí-los em água morna e cortar os cabinhos, que serão aproveitados posteriormente em outro prato. Coloque o óleo vegetal em uma pequena panela, em fogo médio. Adicione os cogumelos e frija-os dos dois lados durante 3 minutos.

Adicione saquê mirin e shoyu sacudindo durante 30 segundos (15 segundos de cada lado). Sirva quente ou à temperatura ambiente.






BANANAS GRELHADAS 
pela monja Gyoku En

        “Uma sobremesa simples, leve e fácil de fazer é o que se pede numa refeição Shôjin, para se comer com calma e em seguida saborear um chá.
        Bananas-caturras, conhecidas por esse nome em terras mineiras. Em outros lugares já ouvi dizer que são as bananas-nanicas. Ficam excelentes quando grelhadas com a casca. A gente sabe que está pronta quando a casca está preta e começa a rachar. Então é só servir com a casca, para que cada pessoa a abra e se delicie. Acompanhada de suco de limão ou de geleia de damasco, é o que há!”



[texto enviado na data da lunação para apoiadores, publicado aqui em 23/02/25]

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