27 abril 2021

Ficções baseadas em mapas reais: MARTE


Tutu de feijão 

Abóbora refogada 

Bolinho de milho 

Couve crocante 

Ora-pro-nóbis pururuca 

Morangos flambados 

Sorvete de banana


Lua cheia em Escorpião


Marte em Gêmeos

        Recentemente Marte passou por terras geminianas. Era onde ele estava no início do ciclo ariano em que estamos e por isso nos marca ainda hoje. Marte quando está em Gêmeos caminha, não está domiciliado, não está exilado, nem nada, está soltíssimo, peregrino [1], disposto a mudar de caminho conforme o que aparece. Marte era então um bandeirante. Saiu de São Paulo em direção ao interior do Brasil, um território desconhecido aos invasores que nos contaram a história.

        Marte se regozija com o sangue e a luta. Partir para o desconhecido é uma marca de tempos arianos. Nesse caso não se trata apenas de luta, mas de usar a inteligência para lidar com situações imprevistas. Esperteza é uma das armas do Marte em signo de Mercúrio. Partiu jubilado na casa 6 do mapa da Lua Nova. Era século XVI e a busca principal era por ouro, o metal solar exaltado por Áries.

        Quando chegou na região onde hoje é Goiás encontrou os habitantes e notou que algumas pessoas se adornavam com ouro. Pressionou os indígenas para que revelassem o local de onde vinha o ouro e eles se negaram. Ameaçou tocar fogo no mato, ameaçou com destruição e eles se negaram. Ameaçou então tocar fogo nos rios. Então tomou um recipiente, encheu com cachaça e ateou fogo.

        Os indígenas, assustados, revelaram o local do ouro e ainda foram escravizados por este que ficou conhecido como Anhanguera.[2] 

        Quando ateou fogo à água, caiu no signo de Câncer.


Cachaça 

        A cachaça usada por Marte em Gêmeos também está no mapa da Lua Cheia. 

        Marte está no signo da Lua, e a Lua está no signo de Marte. Essa situação é chamada de mútua recepção e funciona como o consórcio das plantas companheiras, na agroecologia, fazendo com que um planeta ajude bastante o outro.

        Marte em Câncer preparou a terra, cultivou a cana, entregou pra Lua que, em queda em Escorpião, não pensa duas vezes, faz veneno e mostra pra todo mundo, na casa 10. 

        — Veneno ou remédio?, pergunta mui sugestivamente a Vênus domiciliada em Touro. A cachaça esquenta, relaxa, possibilita a dose de indolência necessária à manutenção da vida. Mercúrio e o Sol concordam, aplaudem. O Sol, em oposição exata, até se lembra com desagrado da ressaca causada pelo álcool, inclemente aos coléricos, mas nada que o leve a discordar do argumento venusiado.

        Ao leitor — especialmente num ciclo ariano — não posso faltar com a verdade: aqui ninguém é imparcial. Sobre a Lua e Marte vocês já sabem: um está na casa do outro, comprometidíssimos. Todo mundo que está em Touro exalta a Lua. Porque é do signo:domicílio de Vênus, exaltação da Lua, exílio de Marte.

        Os grandes, hoje maiores ainda, pois na primeira casa do mapa, Saturno domiciliado, não concordam com alhos nem com bugalhos. Touro e Escorpião quadram Aquário, que é onde eles estão mas pedem para Escorpião por antíscia.

        O Sol conjunto à estrela fixa Hamal, da cabeça do Carneiro, não vê isso com bons olhos.No fim de contas, existe o risco de que esse álcool se torne é combustível pra uma fogueira!

        

Marte em Câncer 

        Em Câncer tudo muda, e para Marte muda as armas e as lutas.

        Nos nossos dias, Marte em Câncer abriu um restaurante. Ele escolheu um lugar com imensas janelas na cozinha no meio da própria plantação orgânica que serve o restaurante.

        “Eu sendo lembrado de que comida saborosa de verdade envolve uma receita mais complexa do que qualquer coisa que eu possa conceber na cozinha. Uma tigela de polenta que aquece seus sentidos e se demora em sua memória se torna tão simples quanto um monte de milho e tão complexa quanto o sistema que a desenvolveu. Refere-se a algo além da safra, do cozinheiro ou do agricultor — ela remonta à paisagem como um todo e a como elas se encaixam. Pode ser mais bem expressa em lugares onde cultivo adequado da terra e boa comida são inseparáveis.” [3]

        O final taurino deste trecho me comove. A alimentação muda as paisagens, vários pensadores da comida já disseram, mas dentro desse contexto, quando a gente acompanha a história do nosso Marte, a afirmação ganha outro tempero, e tanto afeto.

        O cozinheiro-caranguejo vai olhar o que alimenta o nosso alimento. Ele olha para a terra, essa grande mãe. Não à toa é Câncer, o signo da proliferação da vida, que está no Ascendente do Thema Mundi, o horóscopo do mundo.[4]

        “Cultivar a natureza é encorajar a natureza. O que não é fácil de fazer. Mais natureza significa menos controle. Menos controle exige um certo tipo de fé, que é onde sua visão do mundo entra em ação. Você vê o mundo natural como algo que precisa de modificação e de melhoria, ou você o vê como algo a ser observado e interpretado? Você vê seres humanos como uma pequena parte de um sistema inacreditavelmente complexo e frágil, ou você nos considera os comandantes? Os agricultores neste livro são observadores. Eles ouvem. Eles não exercem controle.”[5]

        Câncer dá domicílio à Lua e exalta Júpiter. E olha quem desponta no Ascendente desse mapa. Ah, você se impressionou com Saturno fazendo companhia a ele? Pois foi o próprio Saturno que ensinou à humanidade os fundamentos da agricultura, em uma época chamada de Idade do Ouro, quando as plantas vicejavam e ninguém passava fome. Não há agricultura sem Saturno, sem os ciclos que se sucedem, sem a morte desta forma, de uma fruta que caiu, mas que é vida que nutre o solo.

        Júpiter e Saturno no Ascendente fazem a gente se lembrar que existe tanta coisa maior que a nossa tão pequena grande importância. Ao mesmo tempo, em uma visão canceriana, isso tudo pode estar contido no prato de polenta. Marte vai tratar disso tudo que vai ser colocado nesse prato de polenta.

        Aquário é a casa 2 do mapa da Lua Nova que agora se mostra no Ascendente. A casa 2, do sustento que vem se mostrar como pauta.

        Hoje existe um sistema e temos que trabalhar a partir dele. Marte em Câncer, nosso cozinheiro, conversou com muita gente, entre elas muitos agricultores, outros cozinheiros, bebeu um gole de ambrosia de cada um e foi gestando dentro de si uma visão.

        Ele percebeu que mesmo trabalhando com os sistemas de consórcios deplantas, de rotação de culturas, ainda tirava da terra pra cozinha apenas o que ele queria a priori, pois, convenhamos, a cozinha se repete. Ela se baseia em um vocabulário mais ou menos fixo, os mesmos ingredientes, as mesmas técnicas, a Vênus fixa, regendo o Mercúrio fixo e o Sol fixo na casa quatro, quadrando os grandes no Ascendente.

        Neste vídeo você pode ver ele mesmo apresentando um exemplo: para obter o trigo várias plantas que foram cultivadas para a manutenção da saúde do solo são descartadas, e assumiu para si a responsabilidade de utilizar todo o leque de produção do ciclo. E convoca outros chefs a fazerem o mesmo:

        “Como todas as grandes cozinhas típicas, ele está em fluxo constante, evoluindo para refletir o melhor que a natureza pode oferecer.

        E sua realização vai depender, pelo menos em parte, dos chefs. Eles desempenharão um papel de liderança, semelhante ao de um maestro. O chef como maestro é uma comparação fácil: nós nos postamos na frente da cozinha, regendo a orquestra, persuadindo e negociando, reunindo elementos díspares para formar algo completo. Eu não sou o primeiro a fazer essa associação. No entanto, há um nível mais profundo, mais interessante, de trabalho relacionado à regência, que pode dar pistas do papel do chef para o futuro. Esse trabalho por trás dos bastidores, o estudo prévio ao concerto, que investiga a história da composição, seu significado e contexto. Uma vez que ele tenha sido determinado, uma narrativa assume o comando, e o trabalho do maestro é interpretar aquela história por meio da música. Poderíamos dizer que uma cozinha típica é para um chef o que uma partitura é para um maestro. Ela oferece orientação para a criação de algo imediato — um concerto, uma refeição — que também será, em última análise, urdida no tecido da memória.” [6]

        Bonito chamado do nosso Marte em Câncer.

        

Saturno e Júpiter em Aquário 

        “Nos estágios iniciais do planejamento do Stone Barns Center, contei a Jack sobre um fazendeiro que estava colhendo espigas de milho ainda não maduras para o nosso menu. Tratava-se de miniespigas, com apenas alguns centímetros de comprimento, com os grãos ainda não visíveis. Você comia a espiga inteira, que fazia lembrar as espigas de minimilho enlatadas que se encontram em pratos medíocres de vegetais salteados. Exceto que aquelas minúsculas espigas de milho eram realmente saborosas. Eu queria impressionar Jack com aquela novidade. Ele não se impressionou. 

        — Você quer dizer que o seu agricultor cultiva o pé de milho inteiro e depois colhe as espigas quando ainda estão pequeninas? — perguntou ele, o rosto subitamente se crispando como se estivesse absorvendo um golpe na boca do estômago. — Isso é loucura. — Ele se inclinou para a frente e quase tocou o chão com a mão direita, então se levantou na ponta dos pés e, com a mão esquerda estendida para cima, buscou o alto, muito acima da minha cabeça, erguendo as sobrancelhas para indicar a altura que um pé de milho pode alcançar quando cresce. — Só depois de alcançar esta altura é que o milho sequer começará a pensar em produzir a espiga. Aquele pé de milho gigante, grande, sedento, verde e alegre, que mesmo quando produz uma espiga de tamanho completo, analisando todo o reino vegetal, está entre os mais absurdos gastos de energia da Mãe Natureza, e o que você vai aproveitar de todo aquele crescimento? Você vai aproveitar isso aqui. — E me mostrou o dedo mindinho. — Isso é tudo o que você vai aproveitar. — Ele girou a mão de modo a que eu pudesse ver seu dedo de todos os ângulos. — Um minúsculo bocado de milho, praticamente sem nenhum sabor.”[7]

        

As Três Irmãs 

        “Entreguei a Jack a espiga do Flint de Oito Fileiras, de Glenn, e expliquei a situação, temendo que, se a ideia de plantar trigo o desagradasse, o cheque de mil dólares poderia incomodá-lo ainda mais. Mas estava enganado sobre ambas as hipóteses. Ele adorou a ideia. 

        — Olha — e, na linguagem de Jack, “Olha” é uma coisa alegre de se ouvir. “Olha” quer dizer: Sei que posso ter emitido opiniões divergentes quanto a isso no passado, mas existem exceções à minha regra, e esta é uma delas. — Olha, este milho é um caso raro de genética orientada para melhorar o sabor — disse ele, me fazendo recordar as gerações de fazendeiros que haviam escolhido plantar o Flint de Oito Fileiras por seu sabor superior, não apenas por sua produtividade, como é o caso da maioria das variedades atuais. — Com que frequência você tem a oportunidade de participar de uma coisa dessas na vida?

        Até ali, tudo bem. Mas Jack foi um passo adiante. Ele plantou o Flint de Oito Fileiras como os iroqueses plantavam a maior parte de seu milho — lado a lado com feijão e abóbora, em uma estratégia de cultivo de plantas companheiras, chamada de as Três Irmãs. No continuum das práticas agrícolas, a das Três Irmãs fica no extremo oposto à do cultivo típico do milho, em monoculturas de fileiras militares e solo quimicamente adubado. A lógica é agrupar cuidadosamente as safras, em relacionamentos que beneficiam umas às outras, o solo e o agricultor. Os feijões fornecem nitrogênio ao milho (leguminosas extraem nitrogênio do ar e, por meio de uma associação com bactérias nitrificantes, o transferem para a terra); os talos dos pés de milho fornecem o esteio natural para os do feijão, que têm hábito trepador (de modo que Jack não precisaria enfiar estacas para os pés de feijão); e a abóbora, plantada ao redor da base do milho e dos feijões, suprime possíveis plantas invasoras, oferecendo ainda um vegetal adicional à colheita no final do outono.”

        Quando você olha para o mapa da Lua Cheia e vê aquele chão da casa 4, e vê os três planetas ali, o cérebro já começa a investigar qual planeta é qual vegetal das Três Irmãs.

        Mercúrio e Vênus estão sempre perto do Sol, em qualquer mapa, parecem mesmo irmãos. 

        Sol é quem dá a sustentação, são os outros que estão perto dele e não o contrário. Ele é amarelo e rico, então é o milho que, aliás, tem aquela juba de Leão, signo que dá domicílio ao Sol.

        O astrólogo William Lilly escreveu que o feijão é de Mercúrio. Acatamos. 

        E a abóbora é Vênus em Touro. Doce, suculenta, encorpada, cheirosa, linda!


NOTAS 

Cachaça: mais sobre ela, por um apaixonado: https://midauma.blogspot.com/


[1] A não ser por um intervalo entre os graus 17 a 24, onde ele caminha em seus próprios termos e ganha dignidade. 

[2] O livro Delícias do Descobrimento mostra as impressões que os colonizadores tiveram da natureza quando começaram a explorar o Brasil. Por exemplo, parte da nossa sobremesa:










[3] BARBER, Dan. O terceiro prato. Observações sobre o futuro da comida. Rio de Janeiro: Rocco. 2014. pág 16 

[4]http://www.astrologiamedieval.com/tabelas/Thema-Mundi-O-Horoscopo-do-Mundo .pdf 

[5] Op. cit. pág 27 

[6] Op. cit. pág 30 

[7] Op. cit. pág 11


Menu 

        Vamos puxar o consórcio das Três Irmãs, que são plantas americanas com as quais temos intimidade. Lembrando que além dos iroques citados por Dan Barber, os povos pré-colombianos já empregavam essa técnica na América Latina. 

        Milho, feijão e abóbora, pois. Além do equilíbrio e mútua recepção no cultivo, essa combinação também promove a harmonia no prato.

        Os bandeirantes mantinham algumas roças de feijão e abóbora em rotas que foram se criando. O tutu de feijão, o feijão tropeiro são preparos conhecidos deles, que adicionavam ao feijão a farinha de mandioca, deixando o prato mais rico e fácil de comer.

        Com a abóbora faremos um quibebe, suculento doce-picante como a oposição Touro-Escorpião do mapa da Lua Cheia. 

        O milho será bolinho, até porque se alguém se animar a fazer uma caipirinha combina super bem.

        O arroz é opcional. Não desperdiçando alimento, que mal tem deixar a mesa mais servida, com toda essa comensalidade em plena casa 4 do mapa. 

        Pimenta não é opcional, é obrigatória! Marte rege a Lua nos dois momentos dramáticos da lunação: a Lua Nova em Áries e a Lua Cheia em Escorpião.

        Com as instruções direto do Dan Barber, a couve crocante. E quem quiser fazer a mesma coisa com ora-pro-nóbis, recomendo. A ora-pro-nobis e outras PANCs também compõem nossa aposta para a comida do futuro. E fica muito boa assim, fica pururuquinha. 

        Você vai notar que as receitas não são muito precisas. É comida brasileira, é Marte em Câncer com a Lua fixa. Puxa tua memória, tua intuição, liga pra sua mãe pra perguntar detalhes.

        O resultado é um prato convidativo e primaveril como Touro. Então a comida te pica! 

        Carlos Drummond de Andrade nasceu em um momento de Lua Nova. A Lua encontrava o Sol no grau 7 de Escorpião, o mesmo em que está a nossa Lua quando se opõe ao Sol em Touro. É dele o texto que segue:

        O Sorvete 

        “A caminho do cinema, a dois passos dele, na rua principal, está a confeitaria, a cuja porta é grato a gente deter-se, ante as formas caprichosas e coloridas que ali se dirigem simultaneamente a vários sentidos. Certos bolos e cremes, antes de serem degustados pela boca ávida, o são pelo nariz e pelos olhos e, se no-lo permitissem, o seriam pelas mãos, que amariam verificar a maciez, a doçura e a delicadeza da pasta. Único sentido não beneficiado, o ouvido permaneceria alheio a essa fruição geral, se não chegassem até ele os ruídos normais numa casa onde se come, choque de louça no mármore, de metais na louça, pequenos rumores familiares a que se ligam imemorialmente as sensações do paladar, e que tanto contribuem para a composição desse extraordinário prazer de comer. 

        Estávamos absortos na contemplação ritual, misto de atenção a formas simbólicas, e de sonho em torno de idéias complexas que elas sugeriam – ali, diante daqueles pudins e daqueles roxos, amarelos, solferinos, verdes e róseos montículos de açúcar, geléia, ovo, frutas cristalizadas e invisível manteiga, quando um objeto vulgar, mas insólito no lugar onde se achava, me captou o interesse. Encostado a uma das três portas da confeitaria, do lado da calçada, um quadro-negro propunha-nos os seguintes dizeres em giz branco:

        HOJE 

        Delicioso sorvete de 

        ABACAXI 

        Especialidade da casa 

        HOJE!

        A inscrição emocionou-me intensamente, e dei conta a Joel de minha perturbação. 

        – Você está vendo?

        Aparentemente, Joel não se deixara invadir pelo sortilégio das palavras. Sua superioridade! 

        – ‘Delicioso sorvete de abacaxi...’ Nunca tomei disso. 

        – Eu também não – respondeu o fortíssimo Joel. – Deve ser porcaria.

        Eu sabia que Joel falava da boca para fora, e que a idéia de sorvete, exposta de maneira tão súbita, e tão estranha a ele quanto a mim próprio, não lhe podia ser indiferente, e muito menos repugnante. Maliciosamente, procurava cativá-lo no interesse de uma profunda alteração de nosso programa. A saber: cancelaríamos a sessão de cinema, e com os fundos disponíveis atacaríamos o sorvete de abacaxi. 

        (...)

        O garçom depositou cuidadosamente sobre a toalhinha alva dois copos cheios de água, dois guardanapos de papel, com florezinhas pálidas, e duas tacinhas de vidro, contendo, cada uma delas, meia esfera de uma substância alva e brilhante... Crianças de cinco anos desprezarão minha narrativa; e já ouço um leitor maduro, que me interrompe: ‘Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histórica?’ Leitor irritado, não é bem isso. Peço apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda há dois meninos do mais longe sertão. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo e, como todos os meninos de todos os países, se travavam conhecimento com uma coisa de que só conhecessem antes a representação gráfica ou oral, dela se aproximando não raro atribuindo-lhe um valor mágico, às vezes divino, às vezes cruel, em desproporção com a realidade e mesmo fora dela; um valor independente da coisa e diretamente ligado a sugestões de som, cor, forma, calor, densidade, que as palavras despertam em nosso espírito maleável... Como posso reconstituir agora tudo o que nós criáramos, para nosso próprio uso, em torno da palavra sorvete, representativa de uma espécie rara de refresco, que às pequenas cidades não era dado conhecer; e cruzada bruscamente com a nossa velha e querida palavra abacaxi, ambas como que envoltas, por uma astúcia do gerente da confeitaria, na seda fina e lisa da palavra ‘delicioso’?

        A carga de simpatia e sensualidade com que me atirei – nos atiramos – às meias esferas trazia talvez em si o germe da decepção que logo nos assaltou. O sorvete era detestável, de um frio doloroso, do qual se excluía toda lembrança de abacaxi, para só ficar a idéia de uma coisa ao mesmo tempo pétrea e frágil, agressiva aos dentes e, mais para além deles, a uma região íntima do ser em que está o núcleo da personalidade, sua mais profunda capacidade de gozar e sofrer. Era uma dor universal o que ele espalhava, e tão rápida e difundida como se invadisse no mesmo segundo, por mil filamentos, toda a rede nervosa... Lágrimas subiram-me aos olhos. No rosto de Joel, também o sofrimento se desenhava. (...)

        A verdade é que, sem noção alguma de como ingeri-lo, nós pretendíamos absorvê-lo a dentadas, em grandes porções que levavam consigo o pânico de um motor de dentista. O céu da boca era um teto fulgurante de dor: e o pior é que, eu bem o sentia, essa dor era ridícula.

        Renunciei antes de Joel à empreitada de amor-próprio; que o garçom e o caixa me matassem, mas não ‘comeria’ mais aquilo.” 


Carlos Drummond de Andrade. 1973



Menu Marte 

Lua cheia em Escorpião


Tutu de feijão 

Abóbora refogada 

Bolinho de milho 

Couve crocante 

Ora-pro-nobis pururuca 

Morangos flambados 

Sorvete de banana


TUTU DE FEIJÃO 

Se você for começar lá do feijão seco, compre de preferência o feijão carioquinha.

Deixe de molho à noite, em bastante água, e se você pretende cozinhá-lo mais tarde, troque a água pela manhã. 

Na hora de cozinhar, escorra, leve a uma panela de pressão com água que cubra o feijão e mais uns 2 dedos acima, coloque o louro, tampe a panela e leve ao fogo médio.

Quando pegar pressão, diminua o fogo e deixe cozinhar por 10 minutos. Apague o fogo e deixe a pressão sair. 

O tempero do feijão é aquele dado íntimo de cada casa. Cada casa tem o seu jeitinho. Mesmo o louro — eu gosto de cozinhar junto com o feijão porque o louro é praticamente blindado e considero que apenas nos minutos finais não dá tempo dele soltar o sabor, mas tem gente que prefere no finalzinho.

Também tem quem coloque cebola. Eu vou só de alho, sal e um nada de cominho em pó. 

Legal deixar assim bem básico se você preparar a mais para congelar as porções. Assim, quando finalizar pode completar com outros temperos, dependendo do contexo.

Tenha a panela de feijão aberta e uma concha à mão. 

Então, descasque e pique alho, leve a uma frigideira com óleo. Cuidado para não deixar queimar o alho. Hoje vamos colocar uma pitada de cúrcuma porque ela tem um sabor telúrico que praticamente traz a terra pro nariz, traz a consciência da terra sob os pés do touro, sob os pés das tropas, sob os nossos pés hoje, porque é aqui que estamos e agimos. A cúrcuma também é boa para deixar o corpo forte como o do Touro! 

As especiarias devem ficar só uns segundos na frigideira com o óleo e o alho. 

Adicione uma concha do feijão na frigideira e coloque tudo de volta na panela. Deixe uns minutos em fogo baixo para pegar bem e experimente.

No tutu, sim, usaremos cebola. Liquidifique o feijão. 

É possível separar uma porção de feijão sem bater para que o tutu tenha alguns grãos inteiros mas neste caso recomendo bater todo para um tutu mais homogêneo, aveludado como a Vênus em Touro, com carinha de papinha como as comidinhas cancerianas sugerem. 

Pique a cebola, mais algum alho. Tudo bem pequenininho. 

Aqueça uma frigideira com óleo e coloque a cebola e uma pitada de sal para que ela não doure. Quando estiver translúcida com cheiro adocicado, junte o alho. Quando o alho estiver pegando cor nas bordas adicione o feijão batido e mexa. Tempere com a páprica defumada, pimenta do reino e uma pimenta pegada. 

Quando a mistura estiver bem grossinha, junte um pouco de farinha de mandioca. Algo como 1 cS e, mexendo, deixe cozinhar. Se ainda estiver muito molinho, mais um pouco de farinha. É bom fazer isso taurinamente, passo a passo, para não terminar com um bloco seco na panela.


ABÓBORA REFOGADA 

Mesmo refogadinho base. Fixo, né, gente? 

Corte cebola e alho. 

Corte também os tomates em cubos e a abóbora em pedaços pequenos irregulares. Alguns pedacinhos da abóbora derreterão engrossando o pouco caldinho mas teremos pedaços para morder e fazer um contraste de textura com o tutu. Também evita aquela geometria complicada com a abóbora, principalmente se você abraçou a ideia da caipirinha. Tire toda aquelas coisinhas compridas que crescem junto com as sementes. Queremos apenas polpa e um tanto de casca se você confia na procedência dela.

Óleo na panela, fio de óleo e a cebola. Dessa vez gosto dela mais tostadinha então dispenso o sal nessa hora. Quando a cebola estiver pronta adicione o alho e logo depois a abóbora. Vamos deixar esse alho mais cozido do que refogado. Junte também o tomate e se algum ingrediente ameaçar queimar antes que o tomate solte suco, ajude com um gole de água.

A ideia agora é manter o fundo fazendo a crostinha e dissolvendo com mais um gole de água. 

Tempere com sal, pimenta do reino e no final do preparo rale alho para que ainda fique cru. 

Tempere com salsinha. 


ORA-PRO-NOBIS PURURUCA 

COUVE CROCANTE

daqui

Corte folhas de couve em pedaços, unte com azeite, tempere com sal e pimenta do reino e leve ao forno baixo por 2 horas, até que fique bem crocante.  

O processo é o mesmo com a ora-pro-nobis. O resultado é pururucado pois a mucilagem da folha estoura a casquinha. 

É possível fazer as folhas em temperatura mais alta com menos tempo. Não ficarão homogêneas, o que não necessariamente é um problema, porém o risco de queimar é bem alto então se você se distrai facilmente, escolha o caminho temporal longo.


BOLINHO DE MILHO 

daqui 

Tome 1 xícara de milho debulhado. O milho deve ser fresco e maduro, que é mais saboroso e tem mais amido. 

Processe até obter uma massa. Ele fica com as casquinhas, não se preocupe em tentar deixar totalmente liso. 

Aqueça o forno a 200°C.

Coloque em uma tigela de vidro. Coloque sobre ele 2cS de azeite quente. 

Misture e tempere: sal, pimenta do reino, cheiro verde. Como sugerido do vídeo, as ervas frescas que você tiver.

A massa não fica muito modelável, então sirva as porçõezinhas ou quenelles com a ajuda de colheres. Eu não tinha a palha do milho, pois usei um já debulhado e congelado, então forrei com papel manteiga e ficou perfeito apesar de não tão charmoso.

Leve para assar por uns 20 a 30 minutos, até que esteja com extremidades tostadinhas. 

Como sugerido, deixe limões sobre a mesa. 


MORANGO FLAMBADO 

daqui 

Mas a gente vai fazer com cachaça, claro. 

Tome morangos ou outra fruta da estação; em maio boas opções são pêssego ou goiaba.

250g de morango 

1cS de açúcar 

2 cS manteiga vegetal 

¼ xíc de cachaça 


Derreta a manteiga e, ainda em fogo baixo, derreta nela o açúcar. Adicione o morango e deixe que ele fique quente.

Separe uma colher da cachaça e coloque o restante sobre os morangos. Não mexa.

Acenda a cachaça na colher e deite sobre o morango, para que a cachaça da frigideira incendeie. 

Sirva sobre sorvete de banana.


SORVETE DE BANANA 

Na véspera, pique bananas bem maduras em fatias, espalhe-as em um tabuleiro e leve ao congelador. As fatias finas congelarão mais rápido, o que evita que elas fiquem escuras do contato com o ar, e também facilita bastante para bater, que é o nosso próximo e último passo, tão simples é esse preparo. 

Leve as bananas ao processador. Como elas estão maduras não há necessidade de adoçar. Se você quiser, tempere com um sopro de canela. Processe até obter um creme bem lisinho e sirva imediatamente ou leve de volta ao congelador, em um potinho tampado.

É tão simples que parece truque de Anhanguera? 

Seguem mais opções para outros sabores com esta mesma base da nossa musa paradisíaca:

https://www.youtube.com/watch?v=S9b7BbIROC4 

https://www.youtube.com/watch?v=divlj_H8BE0


[texto enviado na data da lunação para apoiadores, publicado aqui em 04/03/25]   

Nenhum comentário: