DÔ - G’astronômicas
Amanhã no começo da tarde a Lua encontra o Sol, iniciando um novo ciclo de Lunação. Espero que vocês tenham passado bem a Lunação de Escorpião, nos seus quintais maiores que o mundo, levantando pedra, tudo tão escuro e profundo quanto um risoto de funghi secchi. Agora toda essa luminosidade! Um senhor Sol em signo de fogo, jubilado, no exuberante Sagitário. Sol, Mercúrio e Lua na casa 9, a casa de Deus, no signo cujo arco mira para o alto e traz temas como a verdade, justiça e cavalo.
Mercúrio combusto em trígono com Marte. Um Mercúrio com apetite mental insaciável! Dentro de uma enorme biblioteca que é a casa 9 ele adquire grandes ideais e até mesmo grande coragem.
E assim começa um dos livros mais engraçados do mundo! A história de um engenhoso fidalgo que lia romances de cavalaria obsessivamente, tendo inclusive vendido parte de seus bens para comprar mais e mais livros. Um belo dia sua consciência é eclipsada e ele decide sair ao mundo como um cavaleiro andante. [1]
A linguagem galopante do Cervantes carrega o leitor. Às vezes os olhos molhados de tanto rir chegam a dificultar a leitura, quantas vezes eu tive que voltar no texto por causa disso! Outras vezes ele mira lá pro alto e se larga em discursos sobre o amor, a justiça e vários temas mui valorosos e… quixotescos!
A língua teve que criar um adjetivo só pra ele.
Olha o mapa. O fidalgo Sol bem feliz na sua biblioteca da casa 9 do mapa. A Lua passa por ele e o eclipsa. A Lua, significando do corpo, traz a disposição, o gosto por grandes ideias, o otimismo!
Não deixemos de considerar que Júpiter, o dispositor da lunação, está em Capricórnio: o caminho é duro e seco. Dom Quixote não se deixa abater. Marte domiciliado no Ascendente diz o que vem à tona nesta lunação: luta!
A professora Maria Augusta da Costa Vieira disse nessa entrevista [2] que os autores dos livros de cavalaria da época sempre davam um jeito de salvar os seus protagonistas, e Cervantes não. Cervantes deixou Dom Quixote se haver com seus problemas; veja se não é um dispositor Júpiter na verdade nua e crua de Capricórnio
De qualquer forma, Dom Quixote tem a Lua, os ideais e a disposição, tem o Mercúrio-Sancho, a quem ele convenceu oferecendo o governo de uma ilha (um sonho desvairado de poder), e tem um amor ideal, a Dulcinéia, na sua casa 12 do Sol, a casa da prisão e da loucura.
Ele tem ainda a visão do Marte fortíssimo, um demônio, que em trígono dá coragem e ímpeto mas no ascendente dá o tom da narrativa: a luta! Gigantes são seus adversários, gigante também é o seu espírito de luta!
O Ascendente da lunação está conjunto à estrela fixa Algenib, que no firmamento localizada na ponta da asa do Pégaso. Vivian Robson explica que Algenib significa “quem carrega”. [3] No mito, quando Medusa foi decapitada pela espada de Perseu, do seu sangue nasceram o gigante Crisaor e Pégaso, o cavalo alado. Pégaso tem história de batalha (pois venceu com Belerofonte a temida Quimera), mas também abriu, com um coice, a fonte Hipocrene, a fonte das musas. Tanto a inspiração quanto o lombo carregam.
“Gallardía y revolución, porque si bien nadie es capaz de inscribir la ficción en la vida, tampoco es capaz de enfrentarse al mundo y su hostilidad de una manera tan extrema y segura como lo hizo el señor Alonso Quijano desde la ficción.” [4]
Também podemos olhar para o Júpiter e o Saturno como o cura e o barbeiro, que tentar dar um pouco de realidade ao amigo. Na segunda casa a partir do Sol, se preocupam com a sua integridade física.
Dom Quixote foi traduzido para diversas línguas logo após seu lançamento em 1605, um fato incomum para a época. Mercúrio, senhor da palavra, enlouquecido pela proximidade com o Sol, rompendo fronteiras linguísticas.
Cervantes viu seu personagem sequestrado em textos alheios (uma espécie de fanfic? Com Mercúrio exilado tudo é possível). Cervantes ficou furioso e se negou a ser assim eclipsado. Escreveu o segundo volume do Quixote, se apropriou dessas narrativas denunciando a falta de autenticidade delas e ainda por cima matou o fidalgo no final para que isso não acontecesse mais!
E não reclame de spoiler, todos nós tivemos mais de 400 anos para conhecer essa história. Spoiler, inclusive, o próprio Mercúrio em Sagitário já dá, vamos lembrar o formato dos títulos dos capítulos:
“CAPÍTULO VIII
Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação.”
E mesmo no título do derradeiro capítulo ele não fez suspense:
“CAPÍTULO LXXIV
De como D. quixote adoeceu, e do testamento que fez, e da sua morte.”
Ou melhor, há um fato importante no último capítulo: Dom Quixote desenlouquece. O que é isso? Outro eclipse? A Lua que deu seus passos por mais de mil páginas e deu de cara com a realidade seca e dura? Que tristeza!, que tristeza!
Disquisição na insônia
Que é loucura; ser cavaleiro andante
Ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
Vê o real e segue o sonho
De um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
E me sabendo tal, sem grão de siso,
Sou – que doideira – um louco de juízo.
[Carlos Drummond de Andrade]
Um livro tem como significador o planeta regente do quinto signo a partir do Ascendente do mapa. No caso do mapa da lunação é Leão. O livro El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha, portanto, o Sol, jubilado.
Saturno domiciliado, como o que quer construir além do tempo, há de estar satisfeito, esta obra é basilar na cultura ocidental.
Mas eis que no ano de 1994 surge Pierre Menard, o autor do Quixote!
Pierre Menard é um personagem de Jorge Luis Borges. [5] Menard é um autor que se propôs a escrever o Dom Quixote de Cervantes. No conto o narrador compara a obra de Miguel de Cervantes com a de Menard, no seu ponto de vista absolutamente mais rico do que o original. Coloca em xeque novamente a verdade e a relação com o leitor, que Cervantes já havia inaugurado.
Cozinha
Na cozinha trabalharemos com mosaicos, e os eclipsaremos, um a um, dando novas camadas de cores, sabores e de relações ao conjunto, um prato chamado Mussacá. Primeiro, permitam-me apresentar-lhes a imagem desse processo:
permitam-me apresentar-lhes a imagem desse processo:
um vitral de lâminas de batatas branqueadas
sobre ele um mosaico de escamas de abobrinhas branqueadas
sobre ele um mosaico de berinjelas tostadas
um eclipse de molho de tomate escuro e perfumoso
um mosaico de peixinho da horta, nada obrigatório. Desses peixinhos aqui.
sobre ele um mosaico de lâminas de batatas
mais um eclipse, dessa vez de molho branco
mosaico de migas manchegas, repasto que o cavaleiro e seu escudeiro hão de ter recebido por diversas vezes.
E ao final, a gente morde todas as camadinhas de uma só vez, como em uma lasanha. Porque assim é a nossa leitura dos clássicos. Como sugeriu o Borges, somos pessoas em 2020, não podemos ler como o Cervantes, como Pierre Menard nem mesmo como o nosso contemporâneo Terry Gilliam pois temos nossa leitura a partir do nosso contexto.
Como acompanhamento, certamente, banderillas, que são petiscos na lança, e deixo como sugestão este Asadillo de pimientos, também manchego, que não executei por falta de pimentões mas que sinceramente não vejo como ficar ruim ou em desequilíbrio com o nosso prato principal. Os ingredientes deste preparo não estão na lista de compras.
Recomendo que se vistam adequadamente, de lança em punho, avental e elmo, que na falta de uma bacia de barbeiro pode ser substituída por uma de cozinha sem grande prejuízo [6], e música. Façam isso pois o caminho é longo! Abaixo, nas instruções da montagem, tem fotos que podem esclarecer o turbilhão de instruções. Mercúrio exilado, nos ajude!
Preparativos de véspera:
Coloque de molho as pepitas de girassol, será a base do molho branco.
Encha suas forminhas de gelo, faça mais gelo em potinhos. Precisaremos de água gelada para branquear as batatas e abobrinha.
Prepare o alho espanhol, que ficará mais curtido. Esse preparo deixa o alho crocante com o sabor muito suave. Se quiser, prepare também as banderillas.
BANDERILLAS
Em pequenas lanças (ou espetinhos de churrasco) coloque uma azeitona, um pedaço pequeno de figo seco, um dente de alho espanhol, tomate cereja (ou outro pequeno), pepino. Eu sugiro o pepino japonês fresco especialmente se você topar fazer o alho espanhol, coisa que eu recomendo mui fortemente. Se não um pepino em picles é legal pra dar alguma acidez. Besunte os ingredientes com azeite cru e orégano (de preferência bem novinho de boa qualidade) ou tomilho fresco.
ALHO ESPANHOL
250g alho sem casca
250ml vinagre de maçã
50ml vinho branco seco
100ml água
2 folhas de louro
4 cravos
20 grãos de pimenta jamaica
1 cS azeite de oliva
2 cS açúcar
4 cc sal
Com exceção do alho, colocar os ingredientes para ferver.
Quanto ferver, adicionar o alho e deixar ali por 2 minutos.
Colocar em vidros esterilizados para guardar.
Preparativos do dia:
Comece cedo.
Corte a berinjela em fatias, passe sal e deixe escorrendo.
Escorra e lave as pepitas de girassol, você vai ver que com o demolho muitas cascas se soltaram, tire-as também.
Coloque as pepitas com 2 ½ xícaras de água nova no liquidificador. Bata bem. Você pode coar se quiser, eu gosto com o resíduozinho, achei que até deu uma textura interessante ao nosso contexto pedregoso.
Corte ou esmigalhe o pão velho, deixe bem pequenos. Que tenha um pouco menos que 1 xícara de migas. O pão da foto abaixo foi cortado em pedaços muito grandes, que depois de assado e crocante competiu com a textura da batata, então deixe-os menorzinhos. Coloque uma colher de azeite de oliva, uma pitada de canela e mexa bem.
Comece a preparar o molho de tomate. Pique ou liquidifique os tomates e verta na panela com alho refogado. Tempere com canela e molho inglês, sal e pimenta do reino. Se precisar de instruções para o molho tem um vídeo aqui.
Enquanto isso, lave as fatias de berinjela, passe-as na farinha e frite em uma frigideira, de preferência de fundo grosso com pouco óleo, em fogo médio/alto. Não sobreponha fatias. Quando a farinha estiver tostadinha vire as fatias, coloque mais um fio de azeite. Não se preocupe que o tostadinho ficará desigual, ou que algumas partes da farinha parecem branquinhas com aquela carinha de que vai dar azia, ela terminará de cozinhar no forno. Cada vez que você retirar a leva de fatias fritas, passe uma água (filtrada) na frigideira, para retirar a farinha que grudou, e coloca essa água com craquinha maravilhosa no molho de tomate. Além de temperar e engrossar o molho, evita que a farinha grudada queime e grude nas próximas fatias de berinjela.
Se você optou pelos peixinhos da horta, faça a mesma coisa: empane na farinha e frite em pouco azeite.
Quando berinjelas, peixinho e molho de tomate estiverem prontos, deixe-os reservados e vamos branquear a batata e abobrinha.
Coloque bastante água para ferver. Salgue. Como se fosse cozinhar macarrão.
Tenha em mãos: uma peneira ou duas, o refratário onde será assada a Mussacá, um mandolim (ou tábua e faca, para laminar os vegetais), uma escumadeira e uma bacia com água bem gelada.
Comece pela abobrinha. Corte em lâminas e coloque na água fervendo por uns 30 segundos. Retire com a escumadeira ou peneira e coloque imediatamente na água gelada. Não deixe a água quente esfriar nem a água gelada esquentar então, se for necessário, divida esse processo em mais vezes com menor quantidade. Dado o choque térmico, retire a abobrinha da água gelada e coloque na peneira, para escorrer o excesso de água.
Descasque uma batata. Faça a mesma coisa. Uma a uma. Vá deixando escorrer de preferência em outra peneira ou escorredor de macarrão.
Chegamos ao último preparo que é o molho branco. Esquente uma panela e nela azeite de oliva. Adicione 4cS farinha de trigo e mexa. Adicione, aos poucos e sem parar de mexer, o leite de girassol. Continue mexendo até que ferva. Tempere com sal e noz moscada. Apague o fogo. Não abandone o molho na panela para que não se forme a nata na superfície do molho, mexa de vez em quando.
Aqueça o forno a 200°C.
Montagem:
Uma parte bem divertida. Pense em Saturno, o Tempo, e Júpiter, Zeus, lá longe, imensos olhando para nós e nossas vidas e nossa História como um teatrinho de formiguinhas.
1. espalhe um pouco de azeite no fundo do refratário ou pratos. Considero o azeite de oliva um bom começo de qualquer história. Eu costumo montar nesses pratos de metal, em porção individual. É bastante sim, mas essa mussacá é super levinha. Além disso, uma lunação de Sagitário tem que ser ritualizada com abundância, mesmo com Júpiter em queda.
2. espalhe metade da batata fazendo o vitral. Não é muita batata, percebe que dá pra vislumbrar o fundo do prato. Percebe também que as batatas não estão completamente cozidas, a parte central das fatias ainda está clarinha. Além da imagem do vitral, da luz divina “filtrada” por um objeto humano, também estou adorando olhar pra essas folhas todas e imaginar toda a biblioteca do Alonso Quijano [7], que ele mesmo tratou de eclipsar quando deixou de ser Dom Quixote.
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