25 abril 2016

na R. Nott

Fazer Fazendo

Por Aline Higa
A colunista convidada Aline Higa, pintora e chef, nos fala sobre a execução de um trabalho artístico. Até que ponto a ideia, ao mesmo tempo em que é feita, inventa novos modos e abre caminhos inexplorados?    



          Em seu livro Problemas da Estética, Luigi Pareyson nos coloca três modos de fazer tradicionais da arte: a arte como fazer, a arte como conhecer e a arte como exprimir. Nenhum deles é considerado satisfatório, por exemplo, o aspecto fabril e o expressivo estão presentes em todas as operações humanas, então não definem a ação como arte. Depois de expostos estes problemas, Pareyson nos dá uma nova saída, que ele chama de formatividade: “O fato é que a arte não é somente executar, produzir, realizar, e o simples 'fazer' não basta para definir sua essência. A arte também é invenção. Ela não é execução de qualquer coisa já ideada, realização de um projeto, produção segundo regras dadas ou predispostas. Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer.”

          Conheci esse texto durante a graduação em pintura, e isso já se aplicava ao meu trabalho, que mesmo com tintas, quase sempre partia das qualidades sensíveis do material, especialmente cor e textura, mas acredito que não podemos desconsiderar os cheiros do material e ferramentas, que envolvem o artista durante o trabalho e acabam também ativando qualidades simbólicas e todo o vocabulário pessoal do artista acerca daquilo.

           A liberdade da formatividade foi ficando mais forte quando, aos poucos, fui trocando a tinta por assemblagens com papeizinhos, objetos e gosmas; e mesmo no laboratório de fotografia os negativos davam lugar a materiais diversos, e no fim do período havia produzido muito mais fotogramas do que fotografias tradicionais. Eu cozinhava bastante na época e não havia casquinha, lâmina, brotinho ou fiapo que eu não colocasse contra a luz para verificar a transparência e levar para o ampliador. Na pintura eu testava reações com temperatura, ferrugens, num grande parque de diversões com os materiais, não havia embate. E mesmo quando tinha que resolver uma questão teórica ou conceitual, era na cozinha, na relação com outros materiais e reações que a solução aparecia.

          Naturalmente é essa técnica, que assumi há anos, que me move agora: cozinhar.

          Como grande parte dos ingredientes é sazonal, o que está bom bonito e barato é o primeiro elemento da composição. Ele então recebe todo um acúmulo de símbolos, mitos (que realmente deixam o resultado final muito mais nutritivo), composições tradicionais, composições experimentais que me deixam curiosa, meu vocabulário de técnicas de preparo... e ele fica marinando nisso tudo.

          Então é hora da escolha do preparo, dos cortes: essa edição, por sua vez, pode levar em conta o clima do dia, minha vontade, restrições dos comensais e, como não pode deixar de ser, o aspecto material conhecido no métier como “o que mais tem na geladeira”, afinal, há muitos perecíveis por aqui.

          E ainda assim, mesmo quando o menu está todo esboçado, materiais comprados, mise en place prontinha, tudo pode mudar. Como sempre comemos e desde pequeninos formamos os nossos gostos sobre comida, os materiais da cozinha estão todos impregnados de muita memória afetiva, de preconceitos, de mistérios também. Isso coloca o cozinheiro na mesma situação em que Lévi-Strauss escreveu sobre o bricoleur: “Tais elementos são, portanto, semiparticularizados: suficientemente para que o bricoleur não tenha necessidade do equipamento e do saber de todos os elementos do corpus, mas não o bastante para que cada elemento se restrinja a um emprego exato e determinado”. (LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem, pág. 33)

          Assim, primeiro há no acúmulo algumas combinações que são bastante fortes quando associadas aos meus mitos, mas enquanto a obra vai se formando, ela mesma começa a formar as suas próprias leis, ou seja, relações que ela me aponta parecem mais pertinentes do que o que foi pré-concebido por mim.

          Com essa liberdade, qualquer coisa pode ser o gatilho para que o caminho mude, pois cada elemento novo – ou cada mudança em algum elemento – muda toda a composição, pois muda a relação entre eles; encontrar um lugar para cada elemento, dentro desse processo, é, segundo Luigi Pareyson, seguir a lei da própria obra, num tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer.




R.NOTT MAGAZINE ISSUE#26 ONLINE



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