Tomem
o ralo e de dois cocos escolhidos – e ralem. Ralem com vontade, vamos, ralem;
nunca fez mal a ninguém um pouco de exercício (dizem que o exercício evita os
pensamentos maus: não creio). Juntem a branca massa bem ralada e a aqueçam
antes de espremê-la: assim sairá mais fácil o leite grosso, o puro leite de
coco sem mistura. À parte o deixem.
Tirado
esse primeiro leite, o grosso, não joguem a massa fora, não sejam esperdiçadas,
que os tempos não estão de desperdício. Peguem a mesma massa e a escaldem na
fervura de um litro d’água. Depois a espremam para obter o leite ralo. O que
sobrar da massa joguem fora, pois agora é só bagaço.
Viúva
é só bagaço, limitação e hipocrisia. Em que nação enterram a viúva na cova com
o marido? Em que país tocam fogo no seu corpo junto com o corpo do defunto?
Antes assim, de uma vez queimada e em cinza, em lugar de consumir-se em fogo
lento e proibido, de queimar-se por dentro em ânsia e em desejo; por fora
hipocrisia, um recato de fazendas negras, os véus cobrindo uma aflita geografia
de medo e de pecado. Viúva é só bagaço e aflição.
Descasquem
o pão dormido e descascado o ponham nesse leite ralo para amolecer. Na máquina
de moer carne (bem lavada) moam o pão assim amolecido em coco, e moam
amendoins, camarões secos, castanhas de caju, gengibre, sem esquecer a pimenta
malagueta ao gosto do freguês (uns gostam de vatapá ardendo na pimenta, outros
querem uma pitada apenas, uma sombra de picante).
Se
o vatapá, forte de gengibre, pimenta, amendoim, não age sobre a gente dando
calor aos sonhos, devassos condimentos? Que sei eu de tais necessidades? Jamais
necessitei de gengibre e amendoim; eram a mão, a língua, a palavra, o lábio,
seu perfil, sua graça, era ele quem me despia do lençol, e do pudor para a
louca astronomia de seu beijo, para me acender em estrelas, em seu mel noturno.
Quem me despe hoje dos véus da pudicícia em meus sonhos de viúva no leito
solitária? De onde vem esse desejo a me queimar o peito e o ventre, se nem a
mão nem o lábio, nem o perfil de lua, nem o riso agreste, se ele não está? Por
que esse desejo nascendo de mim mesma? Por que tanta pergunta, por que esse
interesse de saber o que se passa no íntimo da viúva? Por que não me deixam os
negros véus do luto sobre o rosto, véus do preconceito, cobrindo minha face
dividida, em recato e em anseio dividida. Sou uma viúva, nem falar de tais
coisas fica bem ao meu estado. Viúva no fogão a cozinhar o vatapá, pesando o
gengibre, o amendoim, a malagueta, e tão-somente.
A
seguir agreguem o leite de coco, o grosso e puro,
e finalmente o azeite de
dendê, duas xícaras bem medidas: flor de dendê, da cor de ouro velho, a cor do
vatapá. Deixem cozinhar por longo tempo em fogo baixo; com a colher de pau não
parem de mexer, sempre para o mesmo lado: não parem de mexer senão embola o
vatapá. Mexam, remexam, vamos, sem parar; até chegar ao ponto justo e
exatamente.
Em
fogo lento meus sonhos me consomem, não me cabe culpa, sou apenas uma viúva
dividida ao meio, de um lado viúva honesta e recatada, de outro viúva debochada,
quase histérica, desfeita em chilique e calundu. Esse manto de recato me
asfixia, de noite corro as ruas em busca de marido. De marido a quem servir o
vatapá doirado e meu cobreado corpo de gengibre e mel.
Chegou
o vatapá ao ponto, vejam que beleza! Para servi-lo falta apenas derramar um
pouco de azeite de dendê por cima, azeite cru. Acompanhado de acaçá o sirvam, e
noivos e maridos lamberão os beiços.
In: AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos: história moral e
de amor; ilustrações de Floriano Teixeira. Rio de Janeiro: Record, 1975, pág
212
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