A vida da cozinha baseia-se num ritmo musical, num
encadeamento de movimentos feito passos de dança, e, quando falo de rápido
gesto, é numa mão feminina que penso, e não certamente em meus movimentos
desafinados e entorpecidos, sempre um estorvo ao trabalho alheio. (Isso, ao
menos, é o que sempre ouvi repetir ao longo de toda a minha vida de pais,
companheiros, companheiras, superiores, subalternos e agora até de minha filha.
Espalharam de boca em boca para me desmoralizar, eu sei, acreditam que se continuarem
me dizendo isso, acabarei me convencendo de que algum fundamento de verdade há
de haver aí. Longe disso: eu fico meio apartado, aguardando o momento de ser
útil, de me redimir.)
Agora
os pratos estão todos enjaulados em seu vagãozinho, as caras redondas atônitas
de quando se encontram em posição vertical, as costas curvas à espera da
tempestade que está para se despejar sobre eles, ali, no fundo do túnel em que
vão desaparecer em exílio até que o ciclo dos aguaceiros, das trombas marinhas,
das exalações de vapores se tenha esgotado. Esse é para mim o momento de entrar
em ação.
(...)
A
cozinha, que deveria ser e é o lugar mais alegre da casa (pró-memória: quando
estiver passando a limpo esta página, não posso esquecer de inserir aqui uma
descrição atraente: os reluzentes armários suspensos, o zumbido dos aparelhos
elétricos, o cheiro de limão do detergente para louça), agora é vista pela
mulher como o lugar da opressão, pelo homem como o lugar do remorso. A solução
mais simples seria a intercambialidade dos papéis: marido e mulher cozinhando
juntos, ou em rodízio, ou um cônjuge cozinhando enquanto o outro faz a limpeza
e vice-versa. Mas o fato é que essa solução sofre o empecilho do preconceito (e
aqui deixo o tratamento universal para retornar à exposição daquele caso
particular que é minha experiência de vida cotidiana) segundo o qual se
acredita que eu seja tão incapaz de lidar com forno e fogão que, tão logo me disponho
a fazer alguma coisa, me afastam de imediato por considerarem errado ou desajeitado
ou inútil ou mesmo perigoso o que faço. Como todos os preconceitos, também esse
é facilmente transmissível: já minha filha, que ainda é uma criança, se ficamos
sós eu e ela na cozinha, dá um jeito de criticar todo gesto meu e prefere se
virar sozinha (e depois fornecer à mãe dela relatórios detalhados sobre minhas
inadimplências). Tamanha falta de confiança em meus dotes, assim como sempre me
desanimou do aprendizado, também me desautoriza do papel de educador; eis então
que o saber acumulado pelas gerações mal me chega e já me transpõe,
excluindo-me. (...)
Sem
falsa modéstia, posso dizer que o campo de ação que mais condiz com meu engenho
é o dos transportes. Ir de um lugar a outro transportando um objeto, seja ele
pesado ou leve, por distâncias longas ou breves: quando me encontro nessa
situação me sinto em paz comigo mesmo, como quem consegue dar a seus atos uma
utilidade ou ao menos um fim, e pelo tempo que dura o percurso sinto uma rara
sensação de liberdade interior, a mente divaga, os pensamentos se libram no
voo. Vou de bom grado, por exemplo, “fazer uns servicinhos”: comprar pão,
manteiga, alface, jornal, selos. Digo “fazer uns servicinhos” para estabelecer
uma continuidade entre essas minhas tarefas de chefe de família e as que me
eram confiadas quando garoto; poderia dizer “fazer compras”, mas isso implica
iniciativas, escolhas, riscos: avaliar e comparar preços cada vez mais cruéis,
discutir como açougueiro o corte da carne, captar as sugestões das mercadorias
expostas – as saladas, as primícias exóticas, os queijos. Sem dúvida “fazer
compras” é o que eu mais adoraria, teoricamente; na prática, não posso ter a
pretensão de rivalizar com os que se movem nas lojas com tão maior
naturalidade, rapidez de olhar, experiência e fantasia, senso pratico e
habilidade pessoal. Portanto, é mais sábio eu limitar minhas relações com os
mercados às investidas de emergência para tapar buracos: papelzinho na mão com
as coisas a pedir (“un grand pot de crème
fraîche”) e o peso (“une livre de
tomates”), às vezes até o preço, como quando, garoto me mandavam “fazer uns
servicinhos”. (...)
Entre
os materiais que podem se esgotar e cuja salvação me diz respeito diretamente
está o papel, tenro filho das florestas, espaço vital do homem lente e
escrevente. Compreendo agora que deveria ter começado meu relato distinguindo e
comparando os dois gêneros de lixo doméstico, produtos da cozinha e da escrita,
a lata de lixo e o cesto de papéis. E também distinguindo e comparando o
diferente destino daquilo que cozinha não jogam fora: a obra; a da cozinha,
comida, assimilada em nossa pessoa, e a da escrita, que, uma vez terminada, já
não faz parte de mim e que ainda não podemos saber se vai se tornar alimento de
uma leitura alheia, de um metabolismo menta, quais transformações sofrerá
passando através de outros pensamentos, quanto transmitirá de suas calorias, e
se tornará a colocá-las em circulação, e como.
in: CALVINO, Italo. O Caminho de San Giovani. São Paulo:
Companhia das Letras. 1995. págs 79-101
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