Nesse dia, anos antes, ela sentira o cheiro da loja antes de
vê-la, aromas quentes e empoeirados que faziam cócegas em seu nariz e a atraíam
pela rua estreita. A loja em si era minúscula, talvez do tamanho da sala de
estar de um apartamento, com prateleiras cheias de latas com rótulos escritos
em línguas que ela não reconhecia e velas altas protegidas por vidro e
decoradas com desenhos de pessoas com auréolas e rostos tristes. Numa vitrine
ao lado da caixa registradora havia travessas cheias de comidas de cores
brilhantes: amarelas, vermelhas e verdes, os aromas pungentes e defumados, às
vezes picantes.
A
mulher atrás do balcão viu Lillian em pé junto à vitrine com o olhar vidrado.
– Quer
provar? – perguntou.
Não
perguntou onde estava sua mãe, nem quantos anos Lillian tinha, mas se ela
queria provar. A menina levantou o rosto e sorriu.
A
mulher colocou a mão dentro da vitrine e retirou de lá uma forma amarela e
oval.
– Tamale
– disse, e estendeu o salgado para Lillian num pratinho de papel.
A parte
de fora era macia e levemente crocante, e o recheio era um festival de carne,
cebola, tomate e algo que lembrava vagamente canela.
– Você
entende de comida – comentou a mulher, meneando a cabeça enquanto observava
Lillian comer.
A
menina tornou a erguer os olhos e sentiu o sorriso da mulher envolvê-la.
– As
crianças me chamam de Abuelita – disse ela. – Acho que estou ouvindo sua mãe
chegar.
Lillian
apurou os ouvidos e escutou o som da mãe lendo em voz alta serpentear pela
ruela. Olhou novamente para a loja à sua volta e percebeu um estranho objeto de
madeira pendurado em um gancho numa das prateleiras.
– O que
é aquilo? – perguntou, apontando.
– O que
você acha?
Abuelita
pegou o objeto e o entregou a Lillian, que observou seu formato irregular: um
bastão de 15 centímetros que terminava em um bulbo arredondado com riscos
gravados como sulcos em uma plantação.
– Acho
que é uma varinha mágica – respondeu Lillian.
– Pode
ser – disse Abuelita. – Talvez você deva ficar com ela, para o caso de precisar
de uma.
Lillian
pegou o bastão e enfiou-o no bolso do casaco como um espião que esconde uma
mensagem secreta.
– Volte
sempre que quiser, pequena cozinheira – disse Abuelita.
Ao
longo dos anos, Lillian voltara muitas vezes àquela loja. Abuelita havia lhe
ensinado sobre temperos e comidas que ela nunca vira na casa de Elizabeth ou de
Margareth. Havia abacates, rugosos e duros por fora, verde-claros por dentro,
cremosos como sorvete quando amassados para fazer guacamole. Havia o sabor
defumado da pimenta chipotle e a
crocância agridoce do coentro, que Lillian apreciava tanto que Abuelita sempre
lhe dava um talinho para mascar no caminho de casa. Abuelita não falava muito,
mas quando o fazia, sua conversa era cativante.
§
Assim,
quando Lillian entrou na loja uma semana depois de fazer o purê de batatas para
a mãe, Abuelita a observou com atenção por alguns segundos.
– Você
está me escondendo alguma coisa – disse ela depois de algum tempo.
– Meu
planto não funcionou – respondeu Lillian, desanimada. – Achei que tivesse
conseguido, mas não deu certo.
– O que
houve? – perguntou Abuelita, e Lillian contou tudo, falou dos biscoitos, dos
temperos, de Henry James e do purê de batatas e de como agora ela sentia que,
no final das contas, a comida talvez não fosse a mágica que conseguiria
despertar a mãe de seu longo sono literário e que talvez o sono fosse mesmo a
única alternativa para a mãe.
Quando
Lillian terminou a história, Abuelita passou algum tempo calada e então disse:
– A
questão não é que o que você fez estivesse errado. Você ainda não terminou, só
isso.
– O que
mais posso fazer?
–
Lillian, o coração de cada pessoa tem seu próprio jeito de se abrir. Cada cura
será diferente... mas existem certas coisas de que todos nós precisamos. Antes
de mais nada, precisamos nos sentir seguros. Você fez isso por ela.
– Então
por que ela continua distante?
–
Porque, para fazermos parte deste mundo, precisamos de mais do que segurança.
Sua mãe precisa se lembrar do que perdeu e querer isso novamente. Eu tive uma
ideia – disse a mulher. – Talvez leve alguns minutos.
Abuelita
entregou a Lillian uma tortilha de milho quentinha e fez um gesto para a menina
se sentar à mesinha redonda que ficava ao lado da porta da loja. Enquanto
Lillian observava, Abuelita rasgou um pedaço de um saco de papel pardo e
escreveu alguma coisa, o cenho franzido de concentração.
– Não
sou escritora – comentou enquanto terminava. – Nunca achei que valesse grande
coisa. Mas você vai entender a ideia.
Ela
soltou o papel, pegou outra pequena sacola e começou a selecionar alguns itens
nas prateleiras, de costas para Lillian. Então dobrou o papel, colocou-o por
cima das coisas na sacola e estendeu-a para a menina.
– Tome
– disse. – Depois me conte como foi.
§
Em
casa, Lillian abriu a sacola e sentiu cheiro de laranja, canela, chocolate meio
amargo e outra coisa que não conseguiu identificar muito bem, um aroma profundo
e misterioso como um perfume preso nas dobras de um xale de caxemira. Tirou os
ingredientes da sacola, colocando-os sobre a bancada da cozinha, e desdobrou o
papel que Abuelita pusera por cima, olhando-o com certa reserva. Era uma
receita, ainda que estivesse escrita com a caligrafia de Abuelita, as letras
grossas e quase tão rígidas quanto galhos de árvore. Ela estava prestes a jogar
fora a receita, mas hesitou quando seus olhos leram a primeira linha das instruções.
Pegue sua varinha mágica.
Lillian se deteve.
– Bem, está certo, então – disse.
Puxou uma cadeira para junto da
bancada e, subindo nela, estendeu a mão até o alto do armário para pegar a
pequena caixa de alumínio vermelha onde guardava seus objetos mais preciosos.
A varinha estava quase no fundo
da caixa, debaixo de seu primeiro ingresso de cinema e da miniatura de uma
ponte veneziana que o pai lhe dera pouco antes de ir embora, deixando para trás
apenas algum dinheiro e seu cheiro nos lençóis, este último tendo desaparecido
muito antes de Lillian aprender a lavar roupa. Debaixo da varinha havia uma
velha fotografia da mãe segurando-a no colo quando era bebê – olhava
diretamente para a câmera e tinha um sorriso tão largo, genuíno e lindo quanto
qualquer bolo de chocolate que Lillian pudesse pensar em fazer.
Ela passou muito tempo olhando
para a fotografia, depois desceu da cadeira segurando a varinha na mão direita
e pegou a receita.
Ponha leite em uma panela. Use leite de verdade, daquele grosso.
Abuelita sempre reclamava das
meninas da escola de Lillian, que não queriam comer seus tamales ou pediam enchiladas
em creme de leite azedo e depois ainda removiam cuidadosamente a crosta de
queijo derretido.
– Meninas magrelas – dizia
Abuelita com desdém. – Acham que é possível atrair abelhas com um graveto.
Corte raspas de laranja. Reserve.
Lillian sorriu. Sentia por seu
descascador de frutas o mesmo que algumas mulheres sentem por um par de sapatos
vermelhos de salto alto: um capricho frívolo, só para os dias de festa, mas,
ah, como era lindo! No dia em que Lillian encontrou o pequeno utensílio em um
brechó, um ano antes, levou-o para Abuelita com uma expressão radiante. Na
época, não tinha nem ideia de para que servia, só sabia que adorava seu fino
cabo de aço inox, a estranha ponta de metal do outro lado com cinco furinhos,
as bordas curvas como os babados de um corpete. As ocasiões para usar um
descascador de frutas eram tão raras que tornavam especial qualquer dia comum.
Lillian pegou a laranja e levou-a
até o nariz, sentindo seu aroma. A fruta tinha cheiro de sol e de mãos
pegajosas, de folhas verdes lustrosas e céus azuis, sem nuvens. Um pomar em
algum lugar – seria na Califórnia? Ou quem sabe na Flórida? –, os pais se
entreolhando por cima da sua cabeça, a mãe lhe estendendo uma fruta
amarelo-laranja que Lillian mal conseguia segurar com as duas mãos, rindo e
dizendo: “É daqui que vêm as mercearias.”
Lillian pegou o descascador e
correu-o pela superfície curva da fruta, tirando cinco raspas longas e
enroscadas de laranja, deixando à mostra a parte branca e amarga que havia por
biaxo.
Quebre a canela ao meio.
O pau de canela era fino,
enroscado em torno de si mesmo como um delicado rolo de papiro. Não se parecia
em nada com madeira, pensou Lillian examinando-o mais de perto, mas sim com a
casca de uma árvore, o ponto onde o interior e o exterior se tocavam. A canela
estalou ao se partir, soltando um aroma carregado, ao mesmo tempo quente e
adocicado, que fez seus olhos e nariz arderem e provocou cócegas em sua língua
antes mesmo de ela o provar.
Acrescente ao leite as raspas de laranja e a canela. Rale o chocolate.
O pedaço duro e redondo de
chocolate estava envolto em um plástico amarelo com listras vermelhas e tinha
um aspecto brilhante e escuro quando ela o desembrulhou. O chocolate emitiu um
som áspero ao ser esfregado no lado mais fino do ralador, caindo sobre a
bancada em uma nuvem leve e soltando um aroma que fez com que ela se lembrasse
de cômodos dos fundos empoeirados, cheios de chocolate meio amargo e cartas de
amor, de gavetas de velhas escrivaninhas e das últimas folhas do outono, de amêndoas,
canela e açúcar.
E lá foi ele para dentro do
leite.
Acrescente o anis.
A quantidade do tempero dentro da
sacolinha que Abuelita lhe dera era bem pequena. Ali estava ele, silencioso,
discreto, cor de areia de praia molhada. Ela desfez o nó que fechava o saquinho
e redemoinhos de ouro quente e alcaçuz subiram dançando até seu nariz, trazendo
consigo quilômetros de desertos distante e um céu escuro, sem estrelas, uma
melancolia que ela pôde sentir no fundo dos olhos, na ponta dos dedos. Ao
pousar o saquinho sobre a bancada, Lillian entendeu que aquela especiaria era
mais adulta que ela.
– Brincadeira, hein, Abuelita? –
disse.
Só uma pitatinha. Deixe ferver em
fogo brando até tudo se ligar. Você saberá quando isso acontecer.
Lillian acendeu o fogo baixo. Foi
até a geladeria, pegou o creme de leite fresco e ligou a batedeira em
velocidade alta, para fazer o chantilly. De vez em quando verificava a panela
no fogo. Depois de algum tempo, pôde ver as lascas de chocolate desaparecerem no
leite, derretendo, deixando-o mais espesso, mais cremoso, toda a mistura
unindo-se em uma só coisa em vez de muitas.
Use a varinha mágica.
Lillian pegou a varinha,
fazendo-a rolar entre as palmas das mãos, pensativa. Segurou com firmeza a
parte central do cabo e mergulhou a ponta redonda e riscada na panela. Rolou a
varinha entre as mãos e a ponta riscada girou para lá e para cá no líquido,
fazendo ondas de leite e chocolate atravessarem a panela e formando bolhas na
superfícia.
– Abracadabra – disse. – Por
favor.
Agora ponha isso no café da sua
mãe.
Um dos poucos hábitos cotidianos
que a mãe de Lillian não havia abandonado por causa dos livros era fazer café;
havia sempre um bule sobre a bancada, reconfortante como um casaco de lã.
Lillian encheu a caneca da mãe até a metade com café e em seguida acrescentou o
chocolate quente, coando cuidadosamente as raspas de laranja e a canela para
que a sensação na boa de sua mãe e fosse a de um líquido liso.
Finalize com o chantilly, para uma textura suave. Dê para sua mãe
beber.
– Que cheiro incrível é esse? –
perguntou a mãe quando Lillian entrou na sala segurando a caneca.
– Mágica – respondeu ela.
A mãe de Lillian estendeu a mão
para pegar a caneca e levou-a à boca, soprando de leve a superfície, o vapor
subindo em espiral até seu nariz. Deu um gole hesitante, quase intrigada,
erguendo os olhos do livro para fitar alguma coisa muito distante, e seu rosto
corou de leve. Ao terminar, devolveu a caneca à filha.
– Onde você aprendeu a fazer
isso? – perguntou, recostando-se na cadeira e fechando os olhos.
In: BAUERMEISTER, Erica - Escola dos Sabores. Rio de Janeiro: Sextante. 2010, pág 22-28
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