05 dezembro 2014

Abuelita



Nesse dia, anos antes, ela sentira o cheiro da loja antes de vê-la, aromas quentes e empoeirados que faziam cócegas em seu nariz e a atraíam pela rua estreita. A loja em si era minúscula, talvez do tamanho da sala de estar de um apartamento, com prateleiras cheias de latas com rótulos escritos em línguas que ela não reconhecia e velas altas protegidas por vidro e decoradas com desenhos de pessoas com auréolas e rostos tristes. Numa vitrine ao lado da caixa registradora havia travessas cheias de comidas de cores brilhantes: amarelas, vermelhas e verdes, os aromas pungentes e defumados, às vezes picantes.
                A mulher atrás do balcão viu Lillian em pé junto à vitrine com o olhar vidrado.
                – Quer provar? – perguntou.
                Não perguntou onde estava sua mãe, nem quantos anos Lillian tinha, mas se ela queria provar. A menina levantou o rosto e sorriu.
                A mulher colocou a mão dentro da vitrine e retirou de lá uma forma amarela e oval.
                – Tamale – disse, e estendeu o salgado para Lillian num pratinho de papel.
                A parte de fora era macia e levemente crocante, e o recheio era um festival de carne, cebola, tomate e algo que lembrava vagamente canela.
                – Você entende de comida – comentou a mulher, meneando a cabeça enquanto observava Lillian comer.
                A menina tornou a erguer os olhos e sentiu o sorriso da mulher envolvê-la.
                – As crianças me chamam de Abuelita – disse ela. – Acho que estou ouvindo sua mãe chegar.
                Lillian apurou os ouvidos e escutou o som da mãe lendo em voz alta serpentear pela ruela. Olhou novamente para a loja à sua volta e percebeu um estranho objeto de madeira pendurado em um gancho numa das prateleiras.
                – O que é aquilo? – perguntou, apontando.
                – O que você acha?
                Abuelita pegou o objeto e o entregou a Lillian, que observou seu formato irregular: um bastão de 15 centímetros que terminava em um bulbo arredondado com riscos gravados como sulcos em uma plantação.
                – Acho que é uma varinha mágica – respondeu Lillian.
                – Pode ser – disse Abuelita. – Talvez você deva ficar com ela, para o caso de precisar de uma.
                Lillian pegou o bastão e enfiou-o no bolso do casaco como um espião que esconde uma mensagem secreta.
                – Volte sempre que quiser, pequena cozinheira – disse Abuelita.
                Ao longo dos anos, Lillian voltara muitas vezes àquela loja. Abuelita havia lhe ensinado sobre temperos e comidas que ela nunca vira na casa de Elizabeth ou de Margareth. Havia abacates, rugosos e duros por fora, verde-claros por dentro, cremosos como sorvete quando amassados para fazer guacamole. Havia o sabor defumado da pimenta chipotle e a crocância agridoce do coentro, que Lillian apreciava tanto que Abuelita sempre lhe dava um talinho para mascar no caminho de casa. Abuelita não falava muito, mas quando o fazia, sua conversa era cativante.
§
                Assim, quando Lillian entrou na loja uma semana depois de fazer o purê de batatas para a mãe, Abuelita a observou com atenção por alguns segundos.
                – Você está me escondendo alguma coisa – disse ela depois de algum tempo.
                – Meu planto não funcionou – respondeu Lillian, desanimada. – Achei que tivesse conseguido, mas não deu certo.
                – O que houve? – perguntou Abuelita, e Lillian contou tudo, falou dos biscoitos, dos temperos, de Henry James e do purê de batatas e de como agora ela sentia que, no final das contas, a comida talvez não fosse a mágica que conseguiria despertar a mãe de seu longo sono literário e que talvez o sono fosse mesmo a única alternativa para a mãe.
                Quando Lillian terminou a história, Abuelita passou algum tempo calada e então disse:
                – A questão não é que o que você fez estivesse errado. Você ainda não terminou, só isso.
                – O que mais posso fazer?
                – Lillian, o coração de cada pessoa tem seu próprio jeito de se abrir. Cada cura será diferente... mas existem certas coisas de que todos nós precisamos. Antes de mais nada, precisamos nos sentir seguros. Você fez isso por ela.
                – Então por que ela continua distante?
                – Porque, para fazermos parte deste mundo, precisamos de mais do que segurança. Sua mãe precisa se lembrar do que perdeu e querer isso novamente. Eu tive uma ideia – disse a mulher. – Talvez leve alguns minutos.
                Abuelita entregou a Lillian uma tortilha de milho quentinha e fez um gesto para a menina se sentar à mesinha redonda que ficava ao lado da porta da loja. Enquanto Lillian observava, Abuelita rasgou um pedaço de um saco de papel pardo e escreveu alguma coisa, o cenho franzido de concentração.
                – Não sou escritora – comentou enquanto terminava. – Nunca achei que valesse grande coisa. Mas você vai entender a ideia.
                Ela soltou o papel, pegou outra pequena sacola e começou a selecionar alguns itens nas prateleiras, de costas para Lillian. Então dobrou o papel, colocou-o por cima das coisas na sacola e estendeu-a para a menina.
                – Tome – disse. – Depois me conte como foi.
§

                Em casa, Lillian abriu a sacola e sentiu cheiro de laranja, canela, chocolate meio amargo e outra coisa que não conseguiu identificar muito bem, um aroma profundo e misterioso como um perfume preso nas dobras de um xale de caxemira. Tirou os ingredientes da sacola, colocando-os sobre a bancada da cozinha, e desdobrou o papel que Abuelita pusera por cima, olhando-o com certa reserva. Era uma receita, ainda que estivesse escrita com a caligrafia de Abuelita, as letras grossas e quase tão rígidas quanto galhos de árvore. Ela estava prestes a jogar fora a receita, mas hesitou quando seus olhos leram a primeira linha das instruções.
                Pegue sua varinha mágica.
Lillian se deteve.
– Bem, está certo, então – disse.
Puxou uma cadeira para junto da bancada e, subindo nela, estendeu a mão até o alto do armário para pegar a pequena caixa de alumínio vermelha onde guardava seus objetos mais preciosos.
A varinha estava quase no fundo da caixa, debaixo de seu primeiro ingresso de cinema e da miniatura de uma ponte veneziana que o pai lhe dera pouco antes de ir embora, deixando para trás apenas algum dinheiro e seu cheiro nos lençóis, este último tendo desaparecido muito antes de Lillian aprender a lavar roupa. Debaixo da varinha havia uma velha fotografia da mãe segurando-a no colo quando era bebê – olhava diretamente para a câmera e tinha um sorriso tão largo, genuíno e lindo quanto qualquer bolo de chocolate que Lillian pudesse pensar em fazer.
Ela passou muito tempo olhando para a fotografia, depois desceu da cadeira segurando a varinha na mão direita e pegou a receita.
Ponha leite em uma panela. Use leite de verdade, daquele grosso.
Abuelita sempre reclamava das meninas da escola de Lillian, que não queriam comer seus tamales ou pediam enchiladas em creme de leite azedo e depois ainda removiam cuidadosamente a crosta de queijo derretido.
– Meninas magrelas – dizia Abuelita com desdém. – Acham que é possível atrair abelhas com um graveto.
Corte raspas de laranja. Reserve.
Lillian sorriu. Sentia por seu descascador de frutas o mesmo que algumas mulheres sentem por um par de sapatos vermelhos de salto alto: um capricho frívolo, só para os dias de festa, mas, ah, como era lindo! No dia em que Lillian encontrou o pequeno utensílio em um brechó, um ano antes, levou-o para Abuelita com uma expressão radiante. Na época, não tinha nem ideia de para que servia, só sabia que adorava seu fino cabo de aço inox, a estranha ponta de metal do outro lado com cinco furinhos, as bordas curvas como os babados de um corpete. As ocasiões para usar um descascador de frutas eram tão raras que tornavam especial qualquer dia comum.
Lillian pegou a laranja e levou-a até o nariz, sentindo seu aroma. A fruta tinha cheiro de sol e de mãos pegajosas, de folhas verdes lustrosas e céus azuis, sem nuvens. Um pomar em algum lugar – seria na Califórnia? Ou quem sabe na Flórida? –, os pais se entreolhando por cima da sua cabeça, a mãe lhe estendendo uma fruta amarelo-laranja que Lillian mal conseguia segurar com as duas mãos, rindo e dizendo: “É daqui que vêm as mercearias.”
Lillian pegou o descascador e correu-o pela superfície curva da fruta, tirando cinco raspas longas e enroscadas de laranja, deixando à mostra a parte branca e amarga que havia por biaxo.
Quebre a canela ao meio.
O pau de canela era fino, enroscado em torno de si mesmo como um delicado rolo de papiro. Não se parecia em nada com madeira, pensou Lillian examinando-o mais de perto, mas sim com a casca de uma árvore, o ponto onde o interior e o exterior se tocavam. A canela estalou ao se partir, soltando um aroma carregado, ao mesmo tempo quente e adocicado, que fez seus olhos e nariz arderem e provocou cócegas em sua língua antes mesmo de ela o provar.
Acrescente ao leite as raspas de laranja e a canela. Rale o chocolate.
O pedaço duro e redondo de chocolate estava envolto em um plástico amarelo com listras vermelhas e tinha um aspecto brilhante e escuro quando ela o desembrulhou. O chocolate emitiu um som áspero ao ser esfregado no lado mais fino do ralador, caindo sobre a bancada em uma nuvem leve e soltando um aroma que fez com que ela se lembrasse de cômodos dos fundos empoeirados, cheios de chocolate meio amargo e cartas de amor, de gavetas de velhas escrivaninhas e das últimas folhas do outono, de amêndoas, canela e açúcar.
E lá foi ele para dentro do leite.
Acrescente o anis.
A quantidade do tempero dentro da sacolinha que Abuelita lhe dera era bem pequena. Ali estava ele, silencioso, discreto, cor de areia de praia molhada. Ela desfez o nó que fechava o saquinho e redemoinhos de ouro quente e alcaçuz subiram dançando até seu nariz, trazendo consigo quilômetros de desertos distante e um céu escuro, sem estrelas, uma melancolia que ela pôde sentir no fundo dos olhos, na ponta dos dedos. Ao pousar o saquinho sobre a bancada, Lillian entendeu que aquela especiaria era mais adulta que ela.
– Brincadeira, hein, Abuelita? – disse.
Só uma pitatinha. Deixe ferver em fogo brando até tudo se ligar. Você saberá quando isso acontecer.
Lillian acendeu o fogo baixo. Foi até a geladeria, pegou o creme de leite fresco e ligou a batedeira em velocidade alta, para fazer o chantilly. De vez em quando verificava a panela no fogo. Depois de algum tempo, pôde ver as lascas de chocolate desaparecerem no leite, derretendo, deixando-o mais espesso, mais cremoso, toda a mistura unindo-se em uma só coisa em vez de muitas.
Use a varinha mágica.
Lillian pegou a varinha, fazendo-a rolar entre as palmas das mãos, pensativa. Segurou com firmeza a parte central do cabo e mergulhou a ponta redonda e riscada na panela. Rolou a varinha entre as mãos e a ponta riscada girou para lá e para cá no líquido, fazendo ondas de leite e chocolate atravessarem a panela e formando bolhas na superfícia.
– Abracadabra – disse. – Por favor.
Agora ponha isso no café da sua mãe.
Um dos poucos hábitos cotidianos que a mãe de Lillian não havia abandonado por causa dos livros era fazer café; havia sempre um bule sobre a bancada, reconfortante como um casaco de lã. Lillian encheu a caneca da mãe até a metade com café e em seguida acrescentou o chocolate quente, coando cuidadosamente as raspas de laranja e a canela para que a sensação na boa de sua mãe e fosse a de um líquido liso.
Finalize com o chantilly, para uma textura suave. Dê para sua mãe beber.
– Que cheiro incrível é esse? – perguntou a mãe quando Lillian entrou na sala segurando a caneca.
– Mágica – respondeu ela.
A mãe de Lillian estendeu a mão para pegar a caneca e levou-a à boca, soprando de leve a superfície, o vapor subindo em espiral até seu nariz. Deu um gole hesitante, quase intrigada, erguendo os olhos do livro para fitar alguma coisa muito distante, e seu rosto corou de leve. Ao terminar, devolveu a caneca à filha.
– Onde você aprendeu a fazer isso? – perguntou, recostando-se na cadeira e fechando os olhos.

In: BAUERMEISTER, Erica - Escola dos Sabores. Rio de Janeiro: Sextante. 2010, pág 22-28

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