Meu deslumbramento fora tal que tive certo receio de ler Sargento Getúlio. Ficava em dúvida se me dedicava ou não a essa nova aventura, considerando que talvez, por seu assunto, ela me fosse mais pesada, depois de eu ter me deliciado com o livro anterior. Quando enfim me decidi, eu o li de um só fôlego. Se eu havia gostado da leitura anterior, Sargento Getúlio, com sua narrativa complexa e seu tema árido, se mostrou para mim como a obra-prima de João Ubaldo.
Não sei se as pessoas sabem do que estou falando: quando termina um livro bom, a gente fica tomada por uma sensação maravilhosa. Dá um contentamento saber que existe uma alma que nos transporta através de emoções singulares. A gente fica mesmo se perguntando por que não existem mais pessoas com tanto talento.
João Ubaldo morou parte da vida na ilha de Itaparica, onde agora passa temporadas. Nunca o vi, e tinha uma grande vontade de conhecê-lo. Um dia, fui ao mercado da ilha e, na seção dos peixes e mariscos, encontrei uma cesta cheia de lulas.
Lembrei-me de quando, muitos anos atrás, ainda menina, estivera com minha mãe na casa de um senhor que nos recebeu com as mãos manchadas de alvaiade - pois estava pintando seus sapatos de lona. Tínhamos ido até lá em busca de sua mulher, queríamos comprar as flores artificiais que ela fabricava. Durante nossa espera pela dona da casa, a conversa indo e vindo, sentimos um cheiro maravilhoso emanar da cozinha.
Ele nos informou que o aroma era de umas lulas que estava preparando. Aceitando prontamente ao seu oferecimento, provei pela primeira vez do petisco, cuja receita o senhor Nozinho acedeu em nos dar na mesma hora.
Ao ver as lulas do mercado de Itaparica, me vieram todas essas lembranças. E tive vontade de preparar a receita aprendida lá atrás.
Comprei as lulas e fui para casa cozinhar. Quando elas já estavam prontas, me ocorreu que eu poderia ir comer lá no largo da quitanda, onde certamente estaria meu primo Silvio, tomando umas cervejas com a turma. Ele ia gostar da surpresa, e de provar do acepipe. E lá fui eu.
Chegando, de longe vi que meu primo estava apenas com um amigo. Ao aproximar-me, tomei enorme susto, e me vi inundada de vergonha: lá estava eu, parada no meio do largo, com uma tigela de barro, cheia de lulas refogadas e, à minha frente, sentado ao lado de Silvio, o escritor que tanto me fizera sonhar, e que tanto eu admirava e queria conhecer.
João Ubaldo lançou sobre o prato um olhar, que eu gosto de lembrar como guloso, e disse: 'Há muito tempo não como isso!'. Eu não poderia ter imaginado tal encontro, nem se tivesse o poder de domar a ficção como faz o escritor.
Eu me sentia sobrando no cenário, enquanto os dois se deliciavam com as lulas e uma farofinha providenciada com o povo do bar. João Ubaldo Ribeiro tão absorto em minha comida como eu em suas páginas!
Fiquei um pouco com os dois, e depois voltei para casa. Tomei o caminho do mar, senti a maré enchendo, aos poucos cobrindo as pedras da praia. Lembrei-me do primeiro capítulo de Viva o povo brasileiro, e de fato me entreguei ao devaneio. Com o vento da tarde me sussurrando lembranças e a espuma marinha a me salpicar, estirei-me nas pedras para sentir o vaivém das ondas.
Olhei aquele céu azul como se fosse dona do mundo. Ao contrário do personagem do meu apreciado escritor, eu estava viva."
In: ORRICO, Bettina. Os jantares que não dei. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 2008. pág 111-112
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