“Se Deus me dissesse para escolher a comida que
eu iria comer no céu, por toda a eternidade, eu não teria um
segundo de hesitação: escolheria sopa. Camarão, picanha
maturada, salmão à Dali, os
pratos mais refinados: tudo me seria insuportável após umas poucas repetições. Mas não é assim com
as sopas. Posso tomar sopa por toda a eternidade, sem me cansar.
Minha relação com as sopas é mais que gastronômica: é uma relação de ternura. Elas me reconduzem à cozinha
de minha casa de menino, ao fogão de lenha, às tardes
de inverno. A janta (janta, mesmo; jantar é coisa de
rico) era servida às 5 da tarde. Ah! Uma sopa quente que se toma
numa tarde fria é uma lareira que se acende no estômago. O
calor, aos poucos, se espalha pelo corpo. Com umas gotinhas de pimenta, então, ele se
transforma em suor, e se a gente não usa o guardanapo a tempo, as gotas de suor na
testa acabam por cair no prato da sopa...
Para mim a sopa é um sacramento de intimidade: um objeto físico,
presente, no qual vive uma felicidade que se teve, ausente. A sopa quente me
transporta para outros lugares, outros tempos. Faço e gosto
de sopas frias. Sopa fria de maçã, por exemplo, tem um sabor exótico.
Agrada-me ao paladar. Mas falta a essas sopas sofisticadas o elemento
sacramental: elas não me levam a lugar algum. Falta-lhes o calor para
me reconduzir ao espaço de intimidade.
Sopa é comida de
pobre. Sopa fina, creme de aspargos, creme de palmito, sopa gelada de maçã, é nobreza posterior. As sopas fundamentais se
fazem com sobras. Sobra, é só pobre quem guarda. Sopa é comida de guerra, de
fome, quando qualquer raspa de comida é bem precioso, que não pode ser
perdido. Rico não guarda sobra. Não precisa. É humilhante. Sobra de rico vai para o lixo. Sobra
de pobre vai para o caldeirão de sopa. As sopas fundamentais se fazem com
sobras, destinadas ao lixo. A sopa é uma poção mágica por meio da qual o que estava perdido é salvo da
perdição e reconduzido à circulação da vida e do prazer.
A imaginação de Bachelard diz que a matéria também imagina.
A água imagina
arcos-íris. As sementes imaginam flores e árvores. O mármore imagina ‘Beijos’
(Rodin) e Pietás (Miguel Ângelo). O rios imaginam nuvens (Heládio
Brito). As comidas também imaginam. O churrasco imagina espetos, facas,
garfos: objetos fálicos, masculinos, infernais. O churrasco precisa de
perfurações, cortes, dilacerações. As mandíbulas
lutam com a carne. A carne resiste.
Já a sopa é mansa. Não é para ser
comida. A colher é um côncavo, um vazio, o feminino. Nada é perfurado. O
gesto é o de ‘colher’: a colher colhe, sem violência. Sempre tive implicância com
uma etiqueta snob, para a tomação de sopa: que o delicado é tomar a
sopa com o lado da colher, e não com o bico. Ora, ora - eu argumentava - por
analogia a gente deveria comer comida sólida com o lado do garfo - o que não é possível. De
fato. Não é possível. É que o garfo pertence à ordem dos
talheres pontiagudos, perfurantes: entram pela frente. A colher pertence à ordem dos
talheres discretos e modestos: entram pelo lado, mansamente...
Salvador Dali, quando menino, sonhava em ser cozinheiro. Preferiu a pintura e
produziu suas maravilhosas telas surrealistas. O realismo, em pintura, se
constrói sobre o pressuposto de que as coisas são aquilo que parecem ser, nem mais e nem menos.
Os olhos, diante de uma tela realista, jamais experimentam a surpresa do
impossível ou do impensado. O realismo confirma aquilo que os olhos comumente
vêem. O surrealismo, ao contrário, acha que aquilo que os olhos comumente
vêem é muito pouco: se olharmos com atenção perceberemos que as coisas são, ao
mesmo tempo, o que são e também outras:
elefantes se refletem nas águas de um lago como cisnes, cenários compõem o corpo
erótico de
uma mulher, o corpo de Cristo é
transparente e através dele se vêem mares, montanhas e barcos. O realismo
confirma o criado. O surrealismo recria o criado.
As sopas são a versão culinária do
surrealismo. Tivesse realizado sua vocação primeira, Salvador Dali seria um especialista
em sopas. Pois as sopas se fazem negando as coisas, na sua realidade natural
bruta e transformando-as por meios das relações insólitas que
o caldo torna possíveis. O caldo da sopa é o meio mágico que
junta no caldeirão aquilo que, na natureza, nasceu separado. Creio
ser impossível catalogar as combinações possíveis: fubá, trigo,
batata, alho, cebola, nabo, cenoura, tomate, ervilha, ovo, abóbora,
mandioca, cará, inhame, carne, peixe, galinha, mariscos,
repolho, couve, beterraba, aspargo, palmito, feijão, arroz,
queijo, azeitona, pão, maçã, abacate, temperos, pimentas, orégano,
tandore - uma canja verdadeira não é canja se
lhe faltarem algumas folhinhas de hortelã. E é preciso não nos
esquecermos que sopa é a única
comida que pode ser feita com pedra, como nos é relatado
numa das estórias clássicas que se conta para crianças e
adultos.
Gosto das sopas, ainda, por serem elas entidades do mundo dos magos, bruxas e
feiticeiros. No mundo mágico não se usa churrasco. Magos, bruxas e feiticeiros
fazem suas poções em enormes caldeirões de
sopa, como é o caso de Panoramix, druida do Asterix e do Obelix, que prepara
sua beberragem de força imbatível num
caldeirão de sopa fervente.
Prefiro as sopas rústicas - e fazê-las me dá um grande
prazer. A sopa de fubá em suas múltiplas
versões, o
caldo verde, a canja com hortelã, a multicolorida sopa de legumes: sopas são sempre
uma alegria. As sopas rústicas dão permissão para se jogar nelas o pão picado.
Haverá coisa
mais feliz que isso? Reuno-me com alguns amigos, às 3as.
feiras, para ler poesia, ao redor de um prato de sopa.
Uma última informação: sopas são remédios
maravilhosos contra depressão. Quando a sopa quente, cheirosa, colorida e
apimentada, bate no estômago, a tristeza se vai e a alegria volta. Não há
melancolia que resista à magia de um prato de sopa...”
[ALVES,
Rubem. Concerto para corpo e alma, p. 69]
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Um comentário:
Eu amo esse texto!!
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