20 dezembro 2011

JOGOS SEM FIM


Italo Calvino
     

Se as galáxias se afastam, a rarefação do universo é compensada pela formação de novas galáxias compostas de matéria que se cria ex novo. Para manter estável a densidade média do universo basta que se crie um átomo de hidrogênio a cada duzentos e cinqüenta milhões de anos para cada quarenta centímetros cúbicos de espaço em expansão. (A essa teoria, chamada de ‘estado estacionário’, se contrapõe outra hipótese segundo a qual o universo teria tido sua origem num momento preciso, após uma gigantesca explosão.)

Eu era criança ainda e já me dava conta, narrou Qfwfq. Conhecia bem os átomos de hidrogênio, um por um, e quando saltava fora um novo eu logo percebia. No meu tempo de infância, para brincar, em todo o universo tínhamos somente átomos de hidrogênio, e passávamos o tempo todo a jogá-los um para o outro, eu e um menino da minha idade que se chamava Pfwfp.
Como era o nosso jogo? Já quase disse. Sendo o espaço curvo, fazíamos os átomos deslizarem ao longo de sua curva, como esferas, e quem mandasse mais longe o seu átomo ganhava. Ao dar o impulso ao átomo era preciso calcular bem os efeitos, as trajetórias, saber aproveitar os campos magnéticos e os campos gravitacionais, se não a bolinha acabava saindo da pista e era eliminada do jogo.
As regras eram as de costume: com um átomo podia-se bater em outro átomo e mandá-lo para a frente, ou então expulsar o átomo do adversário. Naturalmente tinha-se o cuidado de não jogar com muita força, porque da colisão de dois átomos de hidrogênio, tic!, podia-se originar um átomo de deutério, ou mesmo de hélio, e aqueles se tornavam átomos perdidos para a partida: além disso, se um deles era do adversário, devia-se ainda reembolsá-lo.
Vocês sabem como é feita a curvatura do espaço: uma bolina gira gira e num belo instante resvala pelo declive e se distancia de tal modo que não se pode mais alcançá-la. Por isso, na continuidade do jogo, o número de átomos disponíveis diminuía sucessivamente, e quem ficasse primeiro sem átomos perdia a partida.
Mas eis que, exatamente no momento decisivo, começavam a surgir átomos novos.
Entre um átomo novo e um usado sabe-se que há uma boa diferença: os novos eram lustrosos, claros, fresquíssimos, com que úmidos de orvalho. Estabelecemos novas regras: que um dos novos valia três dos velhos; que, mal os novos se formasse, deviam ser repartidos entre nós irmãmente.
Assim nosso jogo não terminava junca, nem nos parecia cansativo pois a cada vez que nos defrontávamos com átomos novos nos parecia que também o jogo era novo e aquela era nossa primeira partida.
Depois, com o correr do tempo, dá-lhe que dá-lhe, o jogo se tornou mais brando. Já não se viam átomos novos: os que se perdiam não eram mais substituídos, nossos lances foram ficando fracos, hesitantes, por medo de perder as poucas peças que nos restavam disponíveis, naquele espaço liso e nu.
Pfwfp também havia mudado: andava distraído, se perdia, não se apresentava quando era a sua vez de jogar, eu o chamava e ele não respondia, só reaparecia cerca de meia hora depois.
- Então, é a sua vez agora, que está fazendo, não quer jogar mais?
- Claro que quero, não se irrite, vou jogar.
- Escute, se você não está ligando para o jogo, vamos acabar com a partida.
- Ora, você cria casos porque está perdendo.
Era verdade: eu estava ficando sem átomos, enquanto Pfwfp, sabe-se lá como, sempre tinha um de sobra. Se não surgissem átomos novos para podermos dividi-los, eu não tinha mais esperanças de superar a vantagem.
Mal Pfwfp se afastou novamente, eu o segui na ponta dos pés. Enquanto estava em minha presença parecia vaguear distraído, assoviando; mas uma vez fora de meu raio de visão começava a trotar no espaço com um andar decidido, como alguém que tem em mente um programa bem definido. E qual era esse programa – esse seu ardil, com verão – eu não tardei a descobrir: Pfwfp conhecia todos os lugares onde se formavam os átomos novos, e de vez em quando andava por ali para colhê-los in loco, assim que acabavam de se formar, e em seguida os escondia. Por isso, não lhe faltavam nunca átomos para jogar!
Mas antes de pô-los em jogo, trapaceiro contumaz que era, tratava de fazê-los passar por átomos antigos, esfregando um pouco a película dos elétrons até torná-la gasta e opaca, para dar-me a impressão de que se tratava de um átomo antigo seu encontrado no bolso por acaso.
Isso não era tudo: fiz um cálculo rápido dos átomos jogados e percebi que eram apenas uma parte daqueles que ele roubava e escondia. Estava fazendo às escondidas uma reserva de hidrogênio? Para que fim? Que teria em mente? Uma suspeita ocorreu-me: Pfwfp queria construir um universo por conta própria, novinho em folha.
A partir daquele momento, não tive paz: devia pagar-lhe com a mesma moeda. Poderia imitá-lo: agora que sabia os lugares, chegar lá adiantado alguns minutos e apoderar-me dos átomos recém-nascidos, antes que ele viesse meter as mãos neles! Mas teria sido simples demais. Queria fazê-lo cair numa cilada digna de sua perfídia. Antes de mais nada, comecei a fabricar átomos falsos: enquanto ele estava empenhado em suas incursões predatórias, eu no meu esconderijo secreto moía, dosava e aglutinava todo o material de que dispunha. Na verdade, esse material era bastante limitado: radiações fotoelétricas, limalha de campos magnéticos, alguns neutrinos perdidos por ali; mas à força de amassar essas coisas, umedecendo-as com saliva, consegui fazê-las formar um todo. Em suam, preparei alguns corpúsculos que, se se observasse com atenção, via-se facilmente que não eram de fato de hidrogênio nem de outro elementeo específico, mas para alguém que passasse às pressas como Pfwfp, agarrando-os e metendo-os no bolso com um movimento furtivo, podiam parecer hidrogênio autêntico e novinho em folha.
Assim, enquanto ele não suspeitava de nada ainda, precedi-o na busca. Havia marcado muito bem os lugares na mente.
O espaço é curvo em toda a parte, mas há pontos em que é mais curvo que em outros: umas espécies de bolsões ou estrangulamentos ou nichos, em que o vácuo se enrola em si mesmo. É nesses nichos que, com um leve tilintar, a cada duzentos e cinqüenta milhões de anos, se forma, como a pérola entre as conchas da ostra, um luzidio átomo de hidrogênio. Eu passava, guardava o átomo no bolso e em seu lugar depositava o falso. Pfwfp não percebia nada: predador, glutão, enchia os bolsos com aquelas varreduras, enquanto eu acumulava todos os tesouros que o universo andava incubando em seu seio.
A sorte mudou em nossas partidas: eu sempre tinha átomos novos para atirar, ao passo que os de Pfwfp falhavam. Por três vezes tentou atirá-los e por três vezes os átomos se esmigalharam como se achatados no espaço. Então Pfwfp procurava todas as desculpas para anular a partida.
- Vamos lá – eu o acossava -, se você não jogar, a partida é minha.
E ele:
- Não vale, quando um átomo se gasta a partida é anulada e tem-se que recomeçar do princípio. – Era uma regra inventada por ele naquele momento.
Eu não lhe dava trégua, dançava ao redor dele, pulava a cavalo em suas costas e cantava:
- Joga joga agora
se não joga, fora!
pois se eu jogo é fogo
vou ganhar o jogo.
- Chega – disse Pfwfp -, vamos mudar de brincadeira.
- Pois bem! – disse eu. – Por que não brincamos de atirar galáxias para o alto?
- Atirar galáxias? – De repente Pfwfp iluminou-se de contentamento. Eu bem que posso! Mas você... você não tem galáxia alguma!
- Tenho, sim.
- Eu também!
- Então vamos ver quem joga mais alto!
E todos os átomos novos que eu tinha escondido, atirei-os ao espaço. A princípio pareciam dispersar-se, depois se condensaram como numa nuvem tênue, e a nuvem cresceu, cresceu, e em seu interior se formaram condensações incandescentes que rodavam, rodavam e em certo ponto se transformaram numa espiral de constelações  jamais vistas que pairava abrindo-se em esguicho e fugia, fugia, enquanto eu a segurava pela cauda correndo. Mas agora não era eu que fazia voar a galáxia, era a galáxia que me fazia voar, agarrado à sua cauda; ou seja, não havia mais alto nem baixo, mas só espaço que se dilatava e a galáxia no meio a se dilatar também, e eu seguro ali a fazer caretas na direção de Pfwfp distante já milhares de anos-luz.
Pfwfp, ao meu primeiro movimento, apressou-se a tirar para fora todo o seu butim e a lançá-lo no espaço acompanhando-o de um movimento balanceado de quem espera ver abrirem-se no céu as espiraris de uma galáxia interminável. Em vez disso, nada. Houve um crepitar de radiações, um relampejar desordenado, e logo tudo se extinguiu.
- Só isso? – gritava a Pfwfp.
E ele invectivava contra mim em resposta, verde de raiva:
- Você vai ver, seu Qfwfq safado!
Mas enquanto isso eu e minha galáxia voávamos entre milhares de outras galáxias, e a minha era a mais nova, invejada por todo o firmamento, brilhante como era de hidrogênio jovem, de juveníssimo berílio e de carbono infante. As galáxias anciãs fugiam de nós devoradas de inveja, e nós saltitantes e soberbos delas fugíamos, ao vê-las assim tão antiquadas e graves. Naquela fuga recíproca, acabamos por atravessar espaços cada vez mais rarefeitos e desimpedidos: e eis que vi em meio ao vácuo despontar aqui e ali como que borrifos incertos de luz. Eram tantas outras galáxia, formadas de matéria que acabara de surgir, galáxias já mais novas que a minha. Depressa o espaço voltava a tornar-se apinhado e denso como a parreira antes da vindima, e voávamos em fuga, a minha galáxia fugindo das mais novas como das anciãs, jovens e anciãs fugindo de nós. E passamos a voar por céus vazios, que logo tornavam a se povoar, e assim por diante.
Num desses repovoamentos, eis que ouço:
- Afwfq, agora você me paga, traidor!
E vejo uma galáxia novíssima voar em nosso encalço, e inclinado sobre a ponta da espiral, a esbravejar contra mim ameaças e insultos, meu antigo companheiro de jogos, Pfwfp.
Começou a perseguição. Ali onde o espaço apresentava uma subida, a galáxia de Pfwfp, jovem e ágil, ganhava terreno, mas onde no espaço havia uma descida a minha mais pesada recuperava a vantagem.
Na corrida, sabe-se qual é o segredo: tudo está na maneira de se fazerem as curvas. A galáxia de Pfwfp tendia a estreitá-las, ao passo que a minha as alargava. Alarga aqui, alarga ali, eis que acabamos por ser projetados para fora da margem do espaço, com Pfwfp atrás. Continuamos a corrida como se faz em casos semelhantes, ou seja, criando espaço à nossa frente à medida que avançamos.
Assim à frente havia o nada e às minhas costas a cara horrenda de Pfwfp que me seguia: em ambas as partes uma vista nada agradável. Contudo preferi olhar para a frente, e então que vejo? Pfwfp, que meu olhar mal acabara de deixar para trás, corria em sua galáxia à minha frente.
- Ah! – gritei. – Agora é minha vez de persegui-lo!
- Como? Disse Pfwfp, não sei bem se atrás de mim ou à minha frente -, eu é que o estou perseguindo!
Volto-me: lá estava Pfwfp sempre nos meus calcanhares. Torno a virar-me para a frente, e lá estava ele a escapar dando as costas para mim. Mas, observando melhor, vi que, diante dessa sua galáxia que me precedia, havia outra, e esta era a minha, tanto é verdade que eu estva montado nela, inconfundível ainda que visto de perfil. E voltei-me para Pfwfp que me seguia, e aguçando a vista vi que a sua galáxia era seguida por outra galáxia, a minha, comigo em cima tal e qual, e aquele u lá naquele exato momento se virava para olhar para trás.
E, assim, por trás de cada Qfwfq havia um Pfwfp e atrás de cada Pfwfp um Qfwfq e cada Pfwfp seguia um Qfwfq e Ra por ele seguido e vice-versa. A distancia entre nós ora se estreitava ora se alongava, mas agora já estava claro que um jamais alcançaria o outro nem o outro o um. Havíamos perdido todo o gosto de brincar de perseguição e além do mais já não éramos crianças, mas doravante não nos restava outra coisa para fazer.


In: Calvino, Italo. As Cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 

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