Italo Calvino
Se as galáxias se afastam, a rarefação do universo é compensada pela
formação de novas galáxias compostas de matéria que se cria ex novo. Para
manter estável a densidade média do universo basta que se crie um átomo de
hidrogênio a cada duzentos e cinqüenta milhões de anos para cada quarenta
centímetros cúbicos de espaço em expansão. (A essa teoria, chamada de ‘estado
estacionário’, se contrapõe outra hipótese segundo a qual o universo teria tido
sua origem num momento preciso, após uma gigantesca explosão.)
Eu era criança ainda e já me dava
conta, narrou Qfwfq. Conhecia bem os
átomos de hidrogênio, um por um, e quando saltava fora um novo eu logo
percebia. No meu tempo de infância, para brincar, em todo o universo tínhamos
somente átomos de hidrogênio, e passávamos o tempo todo a jogá-los um para o
outro, eu e um menino da minha idade que se chamava Pfwfp.
Como era o nosso jogo? Já quase
disse. Sendo o espaço curvo, fazíamos os átomos deslizarem ao longo de sua
curva, como esferas, e quem mandasse mais longe o seu átomo ganhava. Ao dar o
impulso ao átomo era preciso calcular bem os efeitos, as trajetórias, saber
aproveitar os campos magnéticos e os campos gravitacionais, se não a bolinha
acabava saindo da pista e era eliminada do jogo.
As regras eram as de costume: com
um átomo podia-se bater em outro átomo e mandá-lo para a frente, ou então
expulsar o átomo do adversário. Naturalmente tinha-se o cuidado de não jogar
com muita força, porque da colisão de dois átomos de hidrogênio, tic!, podia-se
originar um átomo de deutério, ou mesmo de hélio, e aqueles se tornavam átomos
perdidos para a partida: além disso, se um deles era do adversário, devia-se
ainda reembolsá-lo.
Vocês sabem como é feita a
curvatura do espaço: uma bolina gira gira e num belo instante resvala pelo
declive e se distancia de tal modo que não se pode mais alcançá-la. Por isso,
na continuidade do jogo, o número de átomos disponíveis diminuía
sucessivamente, e quem ficasse primeiro sem átomos perdia a partida.
Mas eis que, exatamente no
momento decisivo, começavam a surgir átomos novos.
Entre um átomo novo e um usado sabe-se que há uma boa diferença: os novos eram lustrosos, claros, fresquíssimos, com que úmidos de orvalho. Estabelecemos novas regras: que um dos novos valia três dos velhos; que, mal os novos se formasse, deviam ser repartidos entre nós irmãmente.
Entre um átomo novo e um usado sabe-se que há uma boa diferença: os novos eram lustrosos, claros, fresquíssimos, com que úmidos de orvalho. Estabelecemos novas regras: que um dos novos valia três dos velhos; que, mal os novos se formasse, deviam ser repartidos entre nós irmãmente.
Assim nosso jogo não terminava
junca, nem nos parecia cansativo pois a cada vez que nos defrontávamos com
átomos novos nos parecia que também o jogo era novo e aquela era nossa primeira
partida.
Depois, com o correr do tempo,
dá-lhe que dá-lhe, o jogo se tornou mais brando. Já não se viam átomos novos:
os que se perdiam não eram mais substituídos, nossos lances foram ficando
fracos, hesitantes, por medo de perder as poucas peças que nos restavam
disponíveis, naquele espaço liso e nu.
Pfwfp também havia mudado: andava
distraído, se perdia, não se apresentava quando era a sua vez de jogar, eu o
chamava e ele não respondia, só reaparecia cerca de meia hora depois.
- Então, é a sua vez agora, que
está fazendo, não quer jogar mais?
- Claro que quero, não se irrite,
vou jogar.
- Escute, se você não está
ligando para o jogo, vamos acabar com a partida.
- Ora, você cria casos porque
está perdendo.
Era verdade: eu estava ficando
sem átomos, enquanto Pfwfp, sabe-se lá como, sempre tinha um de sobra. Se não
surgissem átomos novos para podermos dividi-los, eu não tinha mais esperanças
de superar a vantagem.
Mal Pfwfp se afastou novamente,
eu o segui na ponta dos pés. Enquanto estava em minha presença parecia vaguear
distraído, assoviando; mas uma vez fora de meu raio de visão começava a trotar
no espaço com um andar decidido, como alguém que tem em mente um programa bem
definido. E qual era esse programa – esse seu ardil, com verão – eu não tardei
a descobrir: Pfwfp conhecia todos os lugares onde se formavam os átomos novos,
e de vez em quando andava por ali para colhê-los in loco, assim que acabavam de se formar, e em seguida os escondia.
Por isso, não lhe faltavam nunca átomos para jogar!
Mas antes de pô-los em jogo,
trapaceiro contumaz que era, tratava de fazê-los passar por átomos antigos,
esfregando um pouco a película dos elétrons até torná-la gasta e opaca, para
dar-me a impressão de que se tratava de um átomo antigo seu encontrado no bolso
por acaso.
Isso não era tudo: fiz um cálculo
rápido dos átomos jogados e percebi que eram apenas uma parte daqueles que ele
roubava e escondia. Estava fazendo às escondidas uma reserva de hidrogênio?
Para que fim? Que teria em mente? Uma suspeita ocorreu-me: Pfwfp queria
construir um universo por conta própria, novinho em folha.
A partir daquele momento, não
tive paz: devia pagar-lhe com a mesma moeda. Poderia imitá-lo: agora que sabia
os lugares, chegar lá adiantado alguns minutos e apoderar-me dos átomos
recém-nascidos, antes que ele viesse meter as mãos neles! Mas teria sido
simples demais. Queria fazê-lo cair numa cilada digna de sua perfídia. Antes de
mais nada, comecei a fabricar átomos falsos: enquanto ele estava empenhado em
suas incursões predatórias, eu no meu esconderijo secreto moía, dosava e
aglutinava todo o material de que dispunha. Na verdade, esse material era
bastante limitado: radiações fotoelétricas, limalha de campos magnéticos,
alguns neutrinos perdidos por ali; mas à força de amassar essas coisas,
umedecendo-as com saliva, consegui fazê-las formar um todo. Em suam, preparei
alguns corpúsculos que, se se observasse com atenção, via-se facilmente que não
eram de fato de hidrogênio nem de outro elementeo específico, mas para alguém
que passasse às pressas como Pfwfp, agarrando-os e metendo-os no bolso com um
movimento furtivo, podiam parecer hidrogênio autêntico e novinho em folha.
Assim, enquanto ele não
suspeitava de nada ainda, precedi-o na busca. Havia marcado muito bem os
lugares na mente.
O espaço é curvo em toda a parte,
mas há pontos em que é mais curvo que em outros: umas espécies de bolsões ou
estrangulamentos ou nichos, em que o vácuo se enrola em si mesmo. É nesses
nichos que, com um leve tilintar, a cada duzentos e cinqüenta milhões de anos,
se forma, como a pérola entre as conchas da ostra, um luzidio átomo de
hidrogênio. Eu passava, guardava o átomo no bolso e em seu lugar depositava o
falso. Pfwfp não percebia nada: predador, glutão, enchia os bolsos com aquelas
varreduras, enquanto eu acumulava todos os tesouros que o universo andava
incubando em seu seio.
A sorte mudou em nossas partidas:
eu sempre tinha átomos novos para atirar, ao passo que os de Pfwfp falhavam.
Por três vezes tentou atirá-los e por três vezes os átomos se esmigalharam como
se achatados no espaço. Então Pfwfp procurava todas as desculpas para anular a
partida.
- Vamos lá – eu o acossava -, se
você não jogar, a partida é minha.
E ele:
- Não vale, quando um átomo se
gasta a partida é anulada e tem-se que recomeçar do princípio. – Era uma regra
inventada por ele naquele momento.
Eu não lhe dava trégua, dançava
ao redor dele, pulava a cavalo em suas costas e cantava:
- Joga joga agora
se não joga, fora!
pois se eu jogo é fogo
vou ganhar o jogo.
- Chega – disse Pfwfp -, vamos
mudar de brincadeira.
- Pois bem! – disse eu. – Por que
não brincamos de atirar galáxias para o alto?
- Atirar galáxias? – De repente
Pfwfp iluminou-se de contentamento. Eu bem que posso! Mas você... você não tem
galáxia alguma!
- Tenho, sim.
- Eu também!
- Então vamos ver quem joga mais
alto!
E todos os átomos novos que eu
tinha escondido, atirei-os ao espaço. A princípio pareciam dispersar-se, depois
se condensaram como numa nuvem tênue, e a nuvem cresceu, cresceu, e em seu
interior se formaram condensações incandescentes que rodavam, rodavam e em
certo ponto se transformaram numa espiral de constelações jamais vistas que pairava abrindo-se em
esguicho e fugia, fugia, enquanto eu a segurava pela cauda correndo. Mas agora
não era eu que fazia voar a galáxia, era a galáxia que me fazia voar, agarrado
à sua cauda; ou seja, não havia mais alto nem baixo, mas só espaço que se
dilatava e a galáxia no meio a se dilatar também, e eu seguro ali a fazer
caretas na direção de Pfwfp distante já milhares de anos-luz.
Pfwfp, ao meu primeiro movimento,
apressou-se a tirar para fora todo o seu butim e a lançá-lo no espaço
acompanhando-o de um movimento balanceado de quem espera ver abrirem-se no céu
as espiraris de uma galáxia interminável. Em vez disso, nada. Houve um crepitar
de radiações, um relampejar desordenado, e logo tudo se extinguiu.
- Só isso? – gritava a Pfwfp.
E ele invectivava contra mim em
resposta, verde de raiva:
- Você vai ver, seu Qfwfq safado!
Mas enquanto isso eu e minha
galáxia voávamos entre milhares de outras galáxias, e a minha era a mais nova,
invejada por todo o firmamento, brilhante como era de hidrogênio jovem, de
juveníssimo berílio e de carbono infante. As galáxias anciãs fugiam de nós
devoradas de inveja, e nós saltitantes e soberbos delas fugíamos, ao vê-las
assim tão antiquadas e graves. Naquela fuga recíproca, acabamos por atravessar
espaços cada vez mais rarefeitos e desimpedidos: e eis que vi em meio ao vácuo
despontar aqui e ali como que borrifos incertos de luz. Eram tantas outras
galáxia, formadas de matéria que acabara de surgir, galáxias já mais novas que
a minha. Depressa o espaço voltava a tornar-se apinhado e denso como a parreira
antes da vindima, e voávamos em fuga, a minha galáxia fugindo das mais novas
como das anciãs, jovens e anciãs fugindo de nós. E passamos a voar por céus
vazios, que logo tornavam a se povoar, e assim por diante.
Num desses repovoamentos, eis que
ouço:
- Afwfq, agora você me paga,
traidor!
E vejo uma galáxia novíssima voar
em nosso encalço, e inclinado sobre a ponta da espiral, a esbravejar contra mim
ameaças e insultos, meu antigo companheiro de jogos, Pfwfp.
Começou a perseguição. Ali onde o
espaço apresentava uma subida, a galáxia de Pfwfp, jovem e ágil, ganhava
terreno, mas onde no espaço havia uma descida a minha mais pesada recuperava a
vantagem.
Na corrida, sabe-se qual é o
segredo: tudo está na maneira de se fazerem as curvas. A galáxia de Pfwfp
tendia a estreitá-las, ao passo que a minha as alargava. Alarga aqui, alarga
ali, eis que acabamos por ser projetados para fora da margem do espaço, com
Pfwfp atrás. Continuamos a corrida como se faz em casos semelhantes, ou seja,
criando espaço à nossa frente à medida que avançamos.
Assim à frente havia o nada e às
minhas costas a cara horrenda de Pfwfp que me seguia: em ambas as partes uma
vista nada agradável. Contudo preferi olhar para a frente, e então que vejo?
Pfwfp, que meu olhar mal acabara de deixar para trás, corria em sua galáxia à
minha frente.
- Ah! – gritei. – Agora é minha
vez de persegui-lo!
- Como? Disse Pfwfp, não sei bem
se atrás de mim ou à minha frente -, eu é que o estou perseguindo!
Volto-me: lá estava Pfwfp sempre
nos meus calcanhares. Torno a virar-me para a frente, e lá estava ele a escapar
dando as costas para mim. Mas, observando melhor, vi que, diante dessa sua
galáxia que me precedia, havia outra, e esta era a minha, tanto é verdade que
eu estva montado nela, inconfundível ainda que visto de perfil. E voltei-me
para Pfwfp que me seguia, e aguçando a vista vi que a sua galáxia era seguida
por outra galáxia, a minha, comigo em cima tal e qual, e aquele u lá naquele
exato momento se virava para olhar para trás.
E, assim, por trás de cada Qfwfq
havia um Pfwfp e atrás de cada Pfwfp um Qfwfq e cada Pfwfp seguia um Qfwfq e Ra
por ele seguido e vice-versa. A distancia entre nós ora se estreitava ora se
alongava, mas agora já estava claro que um jamais alcançaria o outro nem o
outro o um. Havíamos perdido todo o gosto de brincar de perseguição e além do
mais já não éramos crianças, mas doravante não nos restava outra coisa para
fazer.
In: Calvino, Italo. As Cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
In: Calvino, Italo. As Cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
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