Italo Calvino
As equações do campo gravitacional que relacionam a curvatura do espaço
à distriguição da matéria já estão começando a fazer parte do raciocínio comum.
Cair no vácuo como eu caía,
nenhum de vocês sabe o que isso quer dizer. Para vocês cair significa tombar,
por exemplo, do vigésimo andar de um arranha-céu, ou de um avião que se avaria
em vôo: precipitar-se de cabeça para baixo, bracejar um pouco no ar, e logo a
terra vem se aproximando e levamos um grande tombo. Pois lhes falo, ao
contrario, de um tempo em que não havia embaixo nenhuma terra nem coisa alguma
de sólido, nem mesmo um corpo celeste na distância que pudesse nos atrair para
a sua órbita. Caía-se assim, indefinidamente, por um tempo indefinido. Afundava
no vazo até o limite extremo em cujo fundo é imaginável que se possa afundar, e
lá chegando mais abaixo, extremamente longe dali, e continuava a cair para
alcançá-lo. Não havendo pontos de referência, não tinha idéia se a minha queda
era precipitada ou lenta. Pensando bem, não havia provas sequer de que
estivesse de fato caindo: quem sabe estava permanentemente imóvel no mesmo
lugar, ou me movia no sentido ascendente; visto que não havia nem em cima nem
embaixo, tudo não passava de questões nominais e dava no mesmo continuar
pensando que caía, como era natural que pensasse.
Admitindo-se, portanto, que
caíssemos, caíamos todos com a mesma velocidade sem qualquer impedimento; de
fato estávamos sempre a bem dizer na mesma altura, eu, Úrsula H’x, o tenente
Fenimore. Não tirava os olhos de cima de Úrsula H’x porque era muito bonita de
se ver, e mantinha na queda uma atitude ágil e descontraída: esperava conseguir
alguma vez interceptar o seu olhar, mas Úrsula H’x ao cair estava sempre
ocupada em lixar e polir as unhas ou em passar o pente nos cabelos longos e
lisos, e jamais voltava o olhar para mim. Para o tenente Fenimore tampouco,
devo dizer, muito embora ele fizesse tudo para atrair sua atenção.
Uma vez o surpreendi – pensava
que eu não estivesse vendo – a fazer sinais para Úrsula H’x: primeiro batia os
dois indicadores estendidos um contra o outro, depois fazia um gesto giratório
com uma das mãos, em seguida apontava para baixo. Em suma, parecia aludir a um
entendimento com ela, a um encontro para mais tarde, em alguma localidade lá
embaixo onde iriam se reunir. Tudo história, sabia muito bem: não havia
encontros possíveis entre nós, proque nossas quedas eram paralelas e entre nós
mantinha-se sempre a mesma distância. Mas o fato de que o tenente Fenimore
metesse na cabeça idéias desse gênero – e procurasse metê-las na cabeça de
Úrsula H’x – me enervava; embora ela não lhe desse atenção e até mesmo
trombeteasse levemente com os lábios, voltando-se – me parecia não haver
dúvidas – para ele. (Úrsula H’x caía revolvendo-se sobre si mesma com
movimentos indolentes como se se espreguiçasse no leito e era difícil dizer se
um gesto seu se dirigia mais a um que a outro ou se estava gracejando consigo
mesma como de costume.)
Eu também, naturalmente, não
sonhava com outra coisa senão encontrar-me com Úrsula H’x, mas, dado que em
minha queda seguia uma reta absolutamente paralela à sua, pareceu-me fora de
propósito manifestar um desejo irrealizável. Decerto, querendo bancar o
otimista, sempre restava a possibilidade de, continuando as nossas duas
paralelas até o infinito, chegar o momento em que elas haveriam de se tocar.
Essa eventualidade bastava para me dar alguma esperança e até mesmo manter-me
em contínua excitação. Direi que um encontro de nossas paralelas era algo que
eu havia sonhado tanto, em todas as suas particularidades, que agora fazia
parte de minha experiência como se já o tivesse vivido. Tudo aconteceria de um
momento para o outro, com simplicidade e naturalidade: depois de tanto andarmos
separados sem podermos nos aproximas um palmo que fosse, depois de tanto
havê-la sentido estranha, prisioneira de seu trajeto paralelo, eis que a
consistência do espaço, de impalpável que sempre havia sido, se tornaria mais
tensa e amo mesmo tempo mais mole, um espessamento do vazio que pareceria vir
não de fora mas de dentro de nós, e nos estreitaria juntos eu e Úrsula H’x (já
me bastava fechar os olhos para vê-la à minha frente, num gesto que sabia seu
mesmo se diferente de todos os gestos habituais: os braços estendidos para
baixo, ao longo do corpo, torcendo os pulsos como se se espreguiçasse e ao
mesmo tempo indiciando uma contorção que era também uma forma quase sinuosa de
se oferecer), e eis que a linha invisível que eu percorria e a percorrida por
ela se tornariam uma linha única, ocupada por uma mistura de mim e dela, na
qual tudo o que nela era macio e secreto acabava penetrado por mim, ou melhor,
envolvia e, quase direi, sugava tudo aquilo que em mim até ali sofrera a tensão
de estar sozinho e separado e enxuto.
Acontece aos sonhos mais belos
transformarem-se de repente em íncubos e assim me vinha amiúde à mente que o
ponto de encontro de nossas duas paralelas podia ser aquele em que se
encontravam todas as paralelas existentes no espaço, e assim iria assinalar não
apenas o encontro entre mim e Úrsula H’x mas igualmente – perspectiva
execrável! – o do tenente Fenimore. No momento exato em que Úrsula deixasse de
me se estranha, um estranho com seus bigodinhos finos e negros se veria
compartilhando nossa intimidade numa forma inextricável; esse pensamento
bastava para me atirar no mais torturante ciúme: ouvia o grito que nosso
encontro – meu e dela – nos arrancava fundir-se num uníssono espasmodicamente
jubiloso e eis que – gelava só de pensar! – de tudo isso se destacava o grito
de Úrsula violentada – assim imaginava em minha invejosa parcialidade – pelas
costas, e ao mesmo tempo o grito de vulgar triunfo do tenente, mas talvez – e
aqui meu ciúme atingia o delírio – esses gritos – dele e dela – podiam também
não ser tão diferentes e dissonantes, somar-se num único grito de perfeito
prazer, distinguindo-se do grito desfeito e desesperado que brotaria de meus
lábios.
Nesse alternar de esperanças e
apreensões prosseguia em minha quda, sem, no entanto, deixar de escrutar as
profundidades do espaço para ver se alguma coisa anunciava uma alteração, atual
ou futura, de nossas condições. Uma ou duas vezes consegui avistar um universo,
mas era muito distante e se mostrava minúsculo, pequeníssimo, muito distante à
esquerda ou à direita; tive tempo apenas de distinguir um certo número de
galáxias como pontinhos luminosos agrupadas em amontoados sobrepostos que
giravam com um débil zumbido, e já tudo havia se desvanecido da forma como
surgira, para cima ou para o lado, a ponto de ficar em dúvida se não teria sido
uma ilusão de vista.
- Olhe lá! Olhe lá! Lá está um
universo! Olhe só! Ali tem alguma coisa! – gritava a Úrsula H’x faendo um sinal
naquela direção, mas ela, a língua serrada entre os dentes, estava toda
entregue a acariciar a pele lisa e lustrosa das pernas à procura de raríssimos
e quase imperceptíveis pêlos supérfluos que ela erradicava com um seco arrancar
das unhas em pinça, e a única indicação de que tivesse compreendido meu sinal
era a maneira com que estendia uma das pernas para cima, como para desfrutar –
poderia dizer-se – com sua metódica inspeção um pouco da luz que reverberava
daquele longínquo firmamento.
Inútil citar o desdém que o
tenente ostentava naqueles casos em relação ao que eu podia ter descoberto:
dava de ombros – o que lhe ocasionava um sobressair das dragonas, do talabarte
e das condecorações de que estava inutilmente arreado – e virara-se par ao lado
oposto rindo à socapa. Ao passo que em outras vezes (quando estava certo de que
eu olhava para o outro lado) era ele que, para despertar a curiosidade de Úrsula
(e então era minha vez de rir, vendo que ela, como resposta, revolvia-se sobre
si mesma numa espécie de cabriola virando para ele o traseiro: um gesto
indubitavelmente pouco respeitoso embora belo de se ver, tanto que eu, depois
de me alegrar vendo nisso uma humilhação para o meu rival, me surpreendia a
invejá-lo como se se tratasse de um privilégio), indicava um esmaecido ponto
que fugia pelo espaço, gritando:
- Veja lá! Um universo! Enorme!
Eu vi! É mesmo um universo!
Não digo que mentia: afirmações
do gênero, pelo que sei, podiam ser tanto verdadeiras quanto falsas. Que vez
por outra passávamos ao largo de um universo, estava provado (ou antes, que um
universo passava ao largo em relação a nós), mas não se podia dizer que havia
vários universos espalhados pelo espaço ou se era sempre o mesmo universo como
qual continuávamos a cruzar girando numa misteriosa trajetória, ou se ao
contrario não havia universo algum e aquilo que acreditávamos ver era a miragem
de um universo que talvez tivesse um dia existido e cuja imagem continuava a
ricochetear pelas paredes do espaço como o ribombar de um eco. Mas podia ainda
ser que os universos sempre estivessem ali, fixos em torno de nós, e nem
sonhassem mover-se, e nós tampouco nos movíamos, e tudo estava parado para
sempre, sem tempo, numa escuridão pontilhada apensas de súbitas cintilações
quando alguma coisa ou alguém conseguia por um momento destacar-se daquela
morna ausência e esboçar a aparência de um movimento.
Hipóteses todas dignas de serem
levadas em consideração, e que me interessavam apenas naquilo que diziam
respeito à nossa queda e à possibilidade de ao menos conseguir tocar Úrsula
H’x. em resumo, ninguém sabia de nada. E então, por que aquele presunçoso
Fenimore assumia às vezes uns ares de superioridade, como se estivesse certo de
seu ponto de vista? Havia percebido que o método mais seguro de me irritar era
fingir que tinha com Úrsula H’x uma familiaridade de longa data. A certo ponto
Úrsula se punha a descer requebrando, com os joelhos juntos, deslocando o peso
do corpo ora para lá ora para cá, como se ondulando nem ziguezague cada vez
mais amplo: tudo para espantar o tédio
daquela queda interminável. O tenente então punha-se também a ondular,
procurando acompanhar o ritmo dela, como se seguisse a mesma pista invisível,
até mesmo como se dançasse ao som de uma mesma música só audível pelos dois,
que ele ia até o ponto de fingir que assoviava, e pondo nisso, ele apensas, uma
espécie de subentendido, de alusão a uma brincadeira entre velhos companheiros
de boemia. Era tudo um blefe, imaginem se eu não sabia, mas bastava-me meter na
cabeça a ideia de um encontro entre Úrsula H’x e o tenente Fenimore já pudesse
ter ocorrido, quem sabe quanto tempo antes, na origem de suas trajetórias, para
que tal idéia me provocasse um travo doloroso, como uma injustiça cometida
conta mim. Refletindo-se, porém: se Úrsula e o tenente tivessem em alguma época
ocupado o mesmo ponto do espaço, era indicio de que suas respectivas linhas de
queda se puseram a distanciar-se e presumivelmente continuavam se distanciando.
Ora, naquele lento mas contínuo distanciar-se do tenente, nada mais fácil que
Úrsula se aproximasse de mim; portanto, o tenente tinha poucas razões para se
envaidecer de suas antigas interseções: era para mim que o futuro sorria.
O raciocínio que me levava a essa
conclusão não bastava para tranqüilizar-me interiormente: a eventualidade de
que Úrsula H’x já tivesse encontrado do tenente era em si uma ofensa que, se me
tivesse sido feita, jamais poderia ser resgatada. Devo acrescentar que passado
e futuro eram para mim termos vagos, entre os quais não conseguia fazer
distinção: minha memória não ia além do presente interminável de nossa queda
paralela, e o que podia ter acontecido antes, dado que não se podia recordar,
pertencia ao mesmo mundo imaginário do futuro, e com o futuro se confundia.
Assim eu podia também supor que, se alguma vez duas paralelas haviam partido do
mesmo, ponto, estar teria de ser a linhas que seguíamos eu e Úrsula H’x (neste
caso era a nostalgia de uma identidade perdida que nutria o meu ansioso desejo
de encontrá-la); mas eu relutava em dar crédito a tais hipóteses, porque podiam
implicar um distanciamento progressivo entre nós e talvez um aproamento nos
braços engalanados do tenente Fenimore, mas sobretudo porque só sabia sair do
presente imaginando um presente diverso, e nada além disso me importava.
Talvez fosse esse o segredo:
identificar-se tanto no próprio estado da queda a ponto de conseguir
compreender que a linha seguida ao cair não era aquela que parecia ser mais
outra, ou seja, conseguir mudar aquela linha da única forma como poderia ser
mudada, quer dizer, fazendo-a tornar-se a que verdadeiramente sempre havia
sido. Mas não foi concentrando-me em mim mesmo que me veio essa idéia, e sim
observando quanto Úrsula H’x era bela mesmo vista por detrás, e notando, no
momento em que passávamos à vista de um sistema de constelações extremamente
distante, um arqueamento da coluna e uma
espécie de estremecimento do traseiro, não tanto do traseiro em si, mas um
deslizamento externo que parecia comprimir o traseiro provocando uma reação não
desfavorável do próprio traseiro. Bastou essa fugas impressão para fazer-me
encara a situação de um modo novo: se era verdade que o espaço com algo dentro
era diferente do espaço vazio porque a matéria provoca nele uma curvatura ou
tensão que obriga todas as linha nele contidas a se estenderem ou a se
curvarem, então a linha que cada um de nós seguia era uma rela apenas no modo
em que uma reta pode ser uma reta, ou seja, deformando-se na medida em que a
límpida harmonia do vazio global se deforma pelo incomodo da matéria, isto é,
enroscando-se em torno daquele nódulo ou verruga ou excrescência que é o
universo no meio do espaço.
Meu ponto de referencia era
sempre Úrsula e de fato uma certa maneira de avançar como que voltejando podia
tornar mais familiar a idéia de que nossa queda era um aparafusar e
desaparafusar numa espécie de espiral que às vezes se contraía, às vezes se
alargava. Mas Úrsula tomava essas debandadas – olhando-se bem – ora num sentido
ora noutro, e assim o desenho que traçávamos era mais complicado, o universo
era, pois, considerado não uma intumescência grosseira li plantada como um
nabo, mas uma figura angulosa e pontiaguda em que a cada reentrância ou
saliência ou facetamento correspondiam cavidades e bossagens e denteações do
espaço e das linhas por nós percorridas. Esta era, no entanto, ainda uma imagem
esquemática, como se tivéssemos de lidar com um solido de paredes lisas, uma
compenetração de poliedros, um agregado de cristais; na verdade o espaço no
qual nos movíamos era todo ameado e perfurado, com agulhas e pináculos que se
irradiavam de todas as partes, com cúpulas e balaústres e peristilos, com
bífores e trifórios e rosáceas, e nós, embora nos parecesse cair sempre e
direto para baixo, na realidade escorríamos nas bordas de modinaturas e frisos
invisíveis, como formigas que para atravessar uma cidade seguem percursos não
traçados sobre o pavimento das ruas mas ao longo das paredes e tetos e das
cornijas e lustres. Ora, falar em cidade é ter ainda em mente figuras de
qualquer forma regulares, com ângulos retos e proporções simétricas, ao passo
que em vez disso devemos ter sempre presente como o espaço se recorta em torno
de aça cerejeira e de cada folha de cada ramo que se move ao vento, e de cada
borda serrilhada de cada folha, e mesmo como se modela em torno das nervuras de
cada folha, e da rede de nervuras no interior de cada folha e sobre os
ferimentos de que as flechas de luz as crivam a cada instante, tudo se
imprimindo em negativo na pasta do vazio, de modo que não existe nada que não
tenha deixado lá seu vestígio, todos os vestígios possíveis de todas as coisas
possíveis e, juntamente, cada transformação desses vestígios instante por
instante, de modo que a verruguinha que cresce embaixo do nariz de um califa ou
a bolha de sabão que pousa sobre o seio de uma lavadeira modificam a forma
geral do espaço em todas as suas dimensões.
Bastou-me compreender que o
espaço era feito dessa maneira para me dar conta de que nele se formavam certas
cavidades macias e acolhedoras como redes onde eu poderia me encontrar unido a
Úrsula H’x e balançar-me junto dela mordendo-nos mutuamente pelo corpo inteiro.
As propriedades do espaço eram tais que uma paralela prendia de um lado e outra
de outro; eu, por exemplo, me precipitava dentro de uma daverna tortuosa ao
passo que Úrsula H’x era sugada por um subterrâneo que se comunicava com aquela
mesma caverna de modo que nos encontrávamos a rolar juntos sobre um tapete de
algas numa espécie de ilha subespacial enlaçando-nos em todas as posturas e
cambalhotas possíveis, até que a determinado momento nossas duas trajet´roas
retomavam sua diração retilínea e prosseguiam cada uma por si como se nada
tivesse acontecido.
A granulosidade do espaço era
porosa e acidentada, com fendas e dunas. Atentando bem, podia perceber o quanto
o percurso do tenente Fenimore passava pelo fundo de um cânion estreito e
tortuoso; então me colocava no alto de um barraco e no momento exato me atirava
em cima dele tratando de atingi-lo com todo o meu peso sobre as vértebras
cervicais. O fundo desses precipícios do vácuo era pedregoso como o leito de um
reio seco, e o tenente Fenimore ao cair ficara com a cabeça engastada entre
dois aguilhões de rocha que afloravam e eu já lhe comprimia um joelho contra o
estômago enquanto ele estava a pondo de me esmagar dos dedos nos espinhos de um
cacto – ou dorso de um porco-espinho? (em todo o caso, espinhos que
correspondem a certas contrações agudas do espaço) – para que eu não
conseguisse me apoderar da pistola que lhe havia feito derrubar com um chute.
Não sei como fui me encontrar um instante depois com a cabeça afundada na
granulosidade sufocante dos estratos onde o espaço cede desmanchando-se em areia;
cuspi, aturdido e ofuscado; Fenimore havia conseguido recuperar a pistola; uma
bala assoviou em meu ouvido, desviada por uma longa proliferação do vácuo que
se elevava em forma de formigueiro. E eu já estava em cima dele com as mãos em
sua garganta para estrangulá-lo, quando as mãos se bateram uma contra a outra
com um plaf!: nossas vias voltavam a ser paralelas e eu e o tenente Fenimore
descíamos mantendo nossa distancia habitual e voltando as costas um para o
outro como duas pessoas que fingem jamais se terem visto ou conhecido.
O que podíamos considerar apensas
Omo linhas retas unidimensionais eram de fato semelhantes a linhas de uma
escrita cursiva traçadas numa página branca por uma pena que transfere palavras
e trechos de frase de uma linha para outra com inserções e remissões na pressa
de terminar uma exposição conduzida mediante aproximações sucessivas e sempre
insatisfatórias, e assim seguíamos, eu e o tenente, Fenimore, encondendo-nos
por trás dos ilhoses dos “l”, principalmente os “l” de “paralelas”, para atirar
ou proteger-nos das balas e eu me fingia de morto e esperava que Fenimore
passasse para dar-lhe uma rasteira e arrastá-lo pelos pés fazendo-lhe bater com
o queixo contra o fundo dos “v” e dos “u” e dos “m” e dos “n” que escritos em
cursivo todo igual tornavam-se um sacolejante suceder-se de buracos no
pavimento como, por exemplo, na expressão “universo unidimensional”, para
depois abandoná-lo estendido num ponto todo riscado de rasuras e dali erguer-me
inteiramente manchado de tinta para correr em direção a Úrsula H’x que queria
bancas a esperta infiltrando-se entre as franjas dos “f” que se afinavam até se
tornarem filiformes, mas eu a agarrei pelos cabelos e preguei-a num “d” ou num
“t” como agora os escrevo na pressa, tão inclinados que se pode deitar em cima
deles, depois escavamos um nicho no “g” de “gruta”, uma toca subterrânea que
podemos adaptar à vontade às nossas dimensões ou tornar ainda mais recolhida e
quase invisível ou ainda colocar em sentido horizontal para estarmos mais confortavelmente
deitados. Embora naturalmente essas mesmas linhas em vez de sucessões de letras
e de palavras possam muito bem ser desenroladas em seu fio negro e tecidas em
linhas retas contínuas paralelas que não significam outra coisas senão elas
mesmas em seu contínuo escorrer sem encontrar-se jamais assim como jamais nos
encontraremos em nossa queda continua. Úrsula H’x e eu, o tenente Fenimore e todos os demais.
In: Calvino, Italo. As Cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
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