- Com licença, doutor?
- Pode entrar, dona Laura.
- O cafezinho com sonho.
- Já tem açúcar?
- Já, sim. Quer que volte depois?
- Pode esperar, dona Laura. Triste a gente comer só.
- Isso mesmo, doutor (e descansa a bandeja na ponta da mesa). Lá em casa meu marido não tem horário. Bom o sonho?
- Bem bom. Com creme, como eu gosto (limpa no dorso da mão o açúcar em volta da boca). É servida, dona Laura?
- Deus me livre. Sonho engorda.
- A senhora tem corpo de menina. Ninguém diria que é casada. Divertiu-se nas férias? Estava pálida, muito pensativa (entre dentadas no sonho e golinhos de café).
- Foi licença para tratamento de saúde.
- É verdade. Não incomodam mais as varizes?
- Agora não (olho baixo, enfia aponta da blusa branca no largo cinto de couro).
- Foi bem a operação?
- Muito bem.
- As varizes, dona Laura, onde que eram?
- Eram ali - desencosta-se da mesa, fica de lado e, inclinando-se, a perna direita dobrada, alisa-a entre as mãos assim ajustasse a meia abaixo do joelho.
- Só aí, dona Laura? (ergue-se da cadeira, as molas estalam, volta ligeiro a sentar-se).
- Na coxa é lisinho, não tem nada. Como aqui - e corre o dedo na penugem do braço leitoso.
- Lisinho, dona Laura?
- Em cima, nada. Foi só ali. Graças a Deus, não ficou sinal.
- O seu marido, dona Laura, continua bebendo?
- Ué, como o senhor sabe? (ao levantar a cabeça, afasta do olho o cabelo negro).
- A senhora me contou, não se lembra? São boas as relações?
- Até que são.Dois meses que não bebe (desenha no pó da mesa, a unha bem vermelha).
- Ele cumpre os deveres?
- Às vezes sim. Outras não.
- A senhora é fria, dona Laura? (um naco de sonho na língua, que é isso, Osíris, está louco?)
- Como assim, doutor, fria?
- Sente falta?
- Quando ele não é ruim.
- Dorme de camisola a senhora?
- De pijama.
- Bolinha ou florzinha, dona Laura?
- Ora, doutor. É florzinha mesmo.
- Gosta de ser beijada? (remata o sonho, esfrega os dedos no guardanapo de papel).
- Por meu marido, gosto.
- Disse que não gostava dele.
- Pois gosto - e sacode a cabeça, olha-o de relance.
- No tempo em que bebia, ele a beijava?
- Pobre de mim, nem queria que chegasse perto.
- Muito tempo?
- Uns três meses.
- E sentia falta?
- Toda mulher sente, não é, doutor?
- Não me chame doutor. Para você sou Osíris.
- Está bem, Osíris.
- Bêbado nunca a beijava? nem à força? (ah, não sei onde estou que não pulo nessa diabinha).
- Eu deixava, Deus me perdoe, com um nojo louco.
- Nunca você o enganou?
- Nunca, doutor.
- Me chame de Osíris.
- Nunca, Osíris. Sou moça honesta, isso ninguém nega.
- Se gostasse de outro, teria coragem de o enganar?
- Não sei, doutor (delineia no pó da mesa ora uma cruz, ora uma bolinha).
- O alcóolatra, dona Laura, pode gerar um monstro. É casada de muito?
- Cinco anos.
- Quantos filhos?
- Nem um.
- Você evita?
- Acho que não deu certo.
- O nojo não deixa ter fiho. É preciso amor. Sabe o que é amor, dona Laura?
- O doutor faz pouco de mim (um tanto afogueada, arzinho desafiante de riso - essa já perdeu o respeito).
- Machucou o dedinho? (a mão estendida para apanhar a xícara). Deixa ver.
- Cuidado, doutor. A porta aberta... Ai, doutor, e se alguém vê?
- E se estivesse fechada? (inútil, repuxa a mão, Laura manobra com a mesa entre os dois).
- Sou uma pobre mulher, o senhor é um doutor! Algué pode estranhar a demora (com a xícara suspensa no ar). Será que vão me tirar daqui, Osíris?
- Não tem perigo, minha filha.
- Devo tudo ao doutor. Até vergonha de pedir. Difícil um lugar para o meu marido? Precisa tanto, coitado. Quando não bebe é muito trabalhador.
- Não prometo, Laura. Tem que ser boazinha, olhe lá.
- Mais um cafezinho, doutor? Desculpe, uma pinta de açúcar no nariz.
- Pode ir, dona Laura.
Conduz a bandeja com as duas mãos e, diante da porta, passa-a para a esquerda. Antes de girar a maçaneta, sorri:
- Amanhã o sonho com creme ou goiabada?
- Com creme - e atira um beijo na ponta dos dedos, só quero saber se está me fazendo de bobo.
In: TREVISAN, Dalton. Continhos Galantes. Porto Alegre: L&PM, 2003.
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