05 fevereiro 2010

O Sorvete - Drummond

“A caminho do cinema, a dois passos dele, na rua principal, está a confeitaria, a cuja porta é grato a gente deter-se, ante as formas caprichosas e coloridas que ali se dirigem simultaneamente a vários sentidos. Certos bolos e cremes, antes de serem degustados pela boca ávida, o são pelo nariz e pelos olhos e, se no-lo permitissem, o seriam pelas mãos, que amariam verificar a maciez, a doçura e a delicadeza da pasta. Único sentido não beneficiado, o ouvido permaneceria alheio a essa fruição geral, se não chegassem até ele os ruídos normais numa casa onde se come, choque de louça no mármore, de metais na louça, pequenos rumores familiares a que se ligam imemorialmente as sensações do paladar, e que tanto contribuem para a composição desse extraordinário prazer de comer.
Estávamos absortos na contemplação ritual, misto de atenção a formas simbólicas, e de sonho em torno de idéias complexas que elas sugeriam – ali, diante daqueles pudins e daqueles roxos, amarelos, solferinos, verdes e róseos montículos de açúcar, geléia, ovo, frutas cristalizadas e invisível manteiga, quando um objeto vulgar, mas insólito no lugar onde se achava, me captou o interesse. Encostado a uma das três portas da confeitaria, do lado da calçada, um quadro-negro propunha-nos os seguintes dizeres em giz branco:

HOJE
Delicioso sorvete de
ABACAXI
Especialidade da casa
HOJE!

A inscrição emocionou-me intensamente, e dei conta a Joel de minha perturbação.
- Você está vendo?
Aparentemente, Joel não se deixara invadir pelo sortilégio das palavras. Sua superioridade!
- ‘Delicioso sorvete de abacaxi...’ Nunca tomei disso.
- Eu também não – respondeu o fortíssimo Joel. – Deve ser porcaria.
Eu sabia que Joel falava da boca para fora, e que a idéia de sorvete, exposta de maneira tão súbita, e tão estranha a ele quanto a mim próprio, não lhe podia ser indiferente, e muito menos repugnante. Maliciosamente, procurava cativá-lo no interesse de uma profunda alteração de nosso programa. A saber: cancelaríamos a sessão de cinema, e com os fundos disponíveis atacaríamos o sorvete de abacaxi.
(...)
O garçom depositou cuidadosamente sobre a toalhinha alva dois copos cheios de água, dois guardanapos de papel, com florezinhas pálidas, e duas tacinhas de vidro, contendo, cada uma delas, meia esfera de uma substância alva e brilhante... Crianças de cinco anos desprezarão minha narrativa; e já ouço um leitor maduro, que me interrompe: ‘Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histórica?’ Leitor irritado, não é bem isso. Peço apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda há dois meninos do mais longe sertão. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo e, como todos os meninos de todos os países, se travavam conhecimento com uma coisa de que só conhecessem antes a representação gráfica ou oral, dela se aproximando não raro atribuindo-lhe um valor mágico, às vezes divino, às vezes cruel, em desproporção com a realidade e mesmo fora dela; um valor independente da coisa e diretamente ligado a sugestões de som, cor, forma, calor, densidade, que as palavras despertam em nosso espírito maleável... Como posso reconstituir agora tudo o que nós criáramos, para nosso próprio uso, em torno da palavra sorvete, representativa de uma espécie rara de refresco, que às pequenas cidades não era dado conhecer; e cruzada bruscamente com a nossa velha e querida palavra abacaxi, ambas como que envoltas, por uma astúcia do gerente da confeitaria, na seda fina e lisa da palavra ‘delicioso’?
A carga de simpatia e sensualidade com que me atirei – nos atiramos – às meias esferas trazia talvez em si o germe da decepção que logo nos assaltou. O sorvete era detestável, de um frio doloroso, do qual se excluía toda lembrança de abacaxi, para só ficar a idéia de uma coisa ao mesmo tempo pétrea e frágil, agressiva aos dentes e, mais para além deles, a uma região íntima do ser em que está o núcleo da personalidade, sua mais profunda capacidade de gozar e sofrer. Era uma dor universal o que ele espalhava, e tão rápida e difundida como se invadisse no mesmo segundo, por mil filamentos, toda a rede nervosa... Lágrimas subiram-me aos olhos. No rosto de Joel, também o sofrimento se desenhava. (...)
A verdade é que, sem noção alguma de como ingeri-lo, nós pretendíamos absorvê-lo a dentadas, em grandes porções que levavam consigo o pânico de um motor de dentista. O céu da boca era um teto fulgurante de dor: e o pior é que, eu bem o sentia, essa dor era ridícula.
Renunciei antes de Joel à empreitada de amor-próprio; que o garçom e o caixa me matassem, mas não ‘comeria’ mais aquilo.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. O Sorvete. In: Contos de aprendiz. 1973

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