“Passem-se os olhos por uma paleta coberta de cores. Um duplo efeito se produz:
1º - Do ponto de vista estritamente físico, o olho sente a cor. Experimenta suas propriedades, é fascinado por sua beleza. A alegria penetra na alma do espectador, que a saboreia como um gourmet, uma iguaria. O olho recebe uma excitação semelhante à ação que se tem sobre o paladar uma comida picante. Mas também pode ser acalmado ou refrescado como um dedo quando toca uma pedra de gelo. Portanto, uma impressão inteiramente física, como toda sensação , de curta duração e superficial. Ela se apaga sem deixar vestígios, mas a alma se fecha.
Ao tocar no gelo, só se pode ter uma sensação de frio físico. Quando o dedo volta a estar quente, a sensação é esquecida. Quando o olho não vê mais a cor, a ação física da pasta colorida cessa. A sensação física do frio do gelo, quando penetra profundamente, desperta outras impressões cada vez mais fortes e pode deflagar toda uma cadeia de eventos psíquicos. O mesmo ocorre coma impressão superficial da cor e de seu desenvolvimento.
(...)
2º - Quanto mais cultivado é o espírito sobre o qual ela se exerce, mais profunda é a emoção que essa ação elementar provoca na alma. Ela é reforçada, nesse caso, por uma segunda ação psíquica. A cor provoca, portanto, uma vibração psíquica. E seu efeito físico superficial é apenas, em suam, o caminho que lhe serve par atingir a alma. Se essa segunda ação é realmente uma ação direta, conforme é lícito supor pelo que se acaba de expor, ou se, pelo contrário, só é obtida por associação, é difícil decidir. Estando a alma estreitamente ligada ao corpo, uma emoção qualquer sempre pode, por associação, provocar nele outra que he corresponda. Por exemplo, como a chama é vermelha, o vermelho pode desencadear uma vibração interior semelhante à da chama. O vermelho quente tem uma ação excitante. Sem dúvida, porque se assemelha ao sangue, a impressão que ele produz pode ser penosa, até dolorosa. A cor, neste caso, desperta a lembrança de outro agente físico que exerce sobre a alma uma ação penosa.
Se fosse sempre assim, seria fácil explicar pela associação todos os outros efeitos físicos da cor, não somente sobre a visão mas também sobre os demais sentidos. Que, por exemplo, o amarelo-claro nos dá uma impressão de azedume e de acidez, porque faz pensar num limão, eis uma explicação que se deve rejeitar.
A propósito do gosto da cor, não faltam exemplos nos quais essa explicação carece igualmente de validade. Um médico de Dresden conta que um de seus pacientes, ‘homem, eminente e muito superior’, tinha o costume de dizer, a respeito de certo molho, que o achava com gosto de ‘azul’. (...) Naturalmente, se nos detivermos nessa explicação, será preciso admitir que o olho está em estreita relação não só com o paladar mas também com os outros sentidos, o que, de resto, acha-se confirmado pela experiência. Há cores que parecem rugosas e ferem a vista. Outras, pelo contrário, dão a impressão de lisas, de aveludadas. (...) Fala-se correntemente do ‘perfume das cores’ ou de sua sonoridade. E não há quem possa descortinar uma semelhança entre o amarelo-vivo e as notas baixas do piano ou entre a voz do soprano e a laca vermelho-escura, tanto essa sonoridade é evidente.
(...)
Com maior razão, não é possível contentar-se com a associação para explicar a ação da cor sobre a alma. A cor, não obstante, é um meio de exercer sobre ela uma influência direta. A cor é a tecla. O olho o martelo. A alma é o piano de inúmeras cordas.
Quanto ao artista, é a mão que, com a ajuda desta ou daquela tecla, obtém da alma a vibração certa.
É evidente, portanto, que a harmonia das cores deve unicamente basear-se no princípio do contato eficaz. A alma humana, tocada em seu ponto mais sensível, responde.
Chamaremos essa base de Princípio da Necessidade Interior."
In: KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes. 1996. págs. 63 a 69
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