“Entre várias tribos indígenas brasileiras, a mitologia sobre a conquista do fogo e das plantas domesticadas marca a passagem da ‘vida longa’ (a imortalidade) para a ‘vida breve’. (1) Nessa ruptura entre o estado de natureza e a cultura situa-se a culinária, com tanta clareza quanto no mito adâmico, da ‘queda’ após o consumo do fruto proibido. O comer é uma espécie de recompensa pela perda da ‘vida longa’, o prazer por excelência da ‘vida breve’.
(...)
Se não dominamos o fogo e, por extensão, o mundo dos alimentos que levamos à boca, o prazer nos escapa entre os dedos e nos vemos como antagônicos ao mundo natural, como se este se recusasse a nos alimentar. Assim é que a reflexão sobre a culinária e a gastronomia faz parte da compreensão da nossa relação com o mundo exterior, abrindo as portas para a construção da nossa individualidade como um processo interativo com o próprio mundo em que vivemos.
(...)
Para uma boa aproximação da gastronomia é conveniente deixar de lado os dogmas sobre o cozinhar e tudo o mais que a cerca. Modernamente, o que mais interessa em culinária é discuti-la tanto sob a ótica da nutrição quanto do gosto, da necessidade e da alegria. Aqui, fique claro, não interessa a nutrição – que é um assunto para cientistas – e, sim, a discussão do gosto, cuja disciplina é a gastronomia. Interessam os prazeres que o fogo aporta à ‘vida breve’.”
(1) Para a explicação mais detalhada sobre esta oposição, ver Lévi-Strauss, O cru e o cozido (São Paulo: Cosac & Naify, 2003).
In: Dória, Carlos Alberto. Estrelas no Céu da Boca. SP: Senac São Paulo, 2006
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário