Logo após a virada do século, numa parte decadente de Montmartre, um grupo de escritores e pintores, jovens e duros, morava num conjunto de prédios arruinados conhecidos como Bateau Lavoir. Formavam uma avant garde unida e pequena, a sorver seus apéritifs quotidianos no vizinho Lapin Agile, dançando na companhia de gângstferes nos infames bals musettes, por vezes juntando os meios de que dispunham para fazer sua festa.
Apenas numa única oportunidade, no entanto – uma noite de outono em 1908 – eles organizaram um banquete. Por volta de 1920, tal acontecimento já adquirira proporções mitológicas para uma geração mais jovem de pintores e escritores, porque muitos dos convidados daquele banquete tornaram-se famosos, vitais para a Paris dos anos 20 e fundamentais para a experiência da ‘geração perdida’. Esse banquete, oferecido por Picasso a Henri Rousseau, é o precursor de todas as refeições festivas que se seguem nesse livro.
(...)
Convidou trinta de seus amigos para um banquete, entre eles os pintores George Braque e Marie Laurencin; os escritores André Salmon e Guillaume Apollinaire; e os americanos Gertrude Stein, seu irmão Leo e sua nova amiga Alice B. Toklas. Os convidados deveriam se reunir em Montmartre para um apéritif no bar Fauvet, ao som de um recém-adquirido órgão elétrico movido a moeda. Às oito da noite, subiriam ladeira acima para o ateliê de Picasso, um enorme celeiro, e lá preparar-se-iam para receber Rousseau, que deveria chegar logo.
Seria então a hora da festança, um riz a la Valenciennes preparado pela namorada de Picasso, Fernande Olivier, além dos acompanhamentos fornecidos por Félix Potin, dono de uma mercearia especializada em preparar pratos prontos. Mais tarde seriam feitos brindes em honra de Rousseau, seguidos de música e poesias. Em todos os detalhes, um tributo digno do homenageado.
Mas a noite não saiu tão bem como planejada. Os relatos variam enormemente entre si (fora na verdade uma noite bastante embriagante). O trecho a seguir compõe-se de fatos que podem ou não ter ocorrido, dependendo de em qual versão se acreditar:
No bar Fauvet, a normalmente discreta Marie Laurencin ingeriu uma quantidade demasiada de apéritifs. Tornou-se barulhenta e inconveniente, pulando sobre as cadeiras e cantando alto. Porém, a atenção dela foi roubada quando Fernande irrompeu furiosa e descontrolada porque os pratos prontos de Potin não haviam sido entregues e a loja já estava fechada. Alice Toklas ofereceu-se para ajudá-la a encontrar uma outra mercearia, e as duas mulheres saíram em disparada. Mas como todas as mercearias do bairro já haviam arriado suas portas, encerrando o expediente, Fernande viu-se, com relutância, obrigada a se virar com arroz à Valenciana e algumas sobremesas. Voltou a esses afazeres no ateliê de Picasso e Alice retornou ao bar para a companhia de Gertrude.
O bando, logo em seguida, partiu do Fauvet na direção do Bateau Lavoir. Por essas horas, Laurencin estava tão bêbada que mal conseguia andar. Gertrude e Leo, com suas grandes costas confortáveis, serviram-lhe de suporte, e a empurraram, enquanto ela balançava de um lado para o outro entre eles durante todo o percurso até o alto da colina. No ateliê, Fernande deu uma olhada em Laurencin e barrou dramaticamente sua entrada. Gertrude disse em alto e bom som que preferia ‘ser enforcada se, depois de todo o trabalho em levar Marie Laurencin ladeira acima para aquela colina diabólica, seu esforço fosse em vão’. Picasso concordou e passou por cima da vontade de Fernande. Laurencin entrou e logo caiu sobre uma bandeja de tarteletes de geléia.
O estúdio era decorado com cavaletes de carpinteiro e pranchas de madeira, como mesas, e longos bancos, também de madeira, serviam de assento. O lugar de honra era uma cadeira de bambu posta em cima de um caixote (...).
Escutou-se finalmente, um ensaio de batida na porta.
Rousseau entrou vagarosamente, trazendo sua famosa bengala numa mão e seu violino na outra. Velho o bastante para ser o avô dos outros presentes, o frágil ancião ficou de pé, vacilante, olhando hesitante à sua volta (...).
Teve início a festa. Picasso havia destinado cinqüenta garrafas de vinho para a noite e todos haviam feito contribuições de forma que o jantar, embora modesto, tinha bastante líquidos. Marie Laurencin continuava a beber e a bancar a idiota até que seu amante, Apollinaire, carregou-a escada abaixo. Quando voltaram, ela estava, segundo Gertrude Stein, ‘um pouco machucada, porém, sóbria’. Vizinhos esfomeados apareceram e afanaram os petit fours. (...) Um grupo de cantores de rua italianos juntou-se à bagunça, sendo entretanto encaminhados à porta por Fernande, que procurava em vão manter a ‘respeitabilidade’ do banquete. Houve brindes e, então, Apollinaire leu um poema que escrevera para Rousseau, cujo final eloqüente terminava assim:
Nous sommes reunis pour célébrer ta gloire
Ces vins qu’em ton honneur nous verse Picasso
Buvons-les donc, puisque c’est l’heure de les boire
Em criant tous em choeur: ‘Vive! Vive Rousseau!’
Estamos reunidos para celebrar a tua glória/Os vinhos que Picasso nos serve em tua honra/Os beberemos porque é chegada a hora de bebê-los/Gritando todos em coro: ‘Viva! Viva Rousseau!’
Modernistas à mesa
RIZ À LA VALENCIENNES
TARTE DE CONFITURE A LA MARIE LAURENCIN
VINHO
Riz à la Valenciennes
Pique uma quantidade generosa de vagens em pedaços de 5 centímetros e ferva na água até ficarem crespas: deve dar cerca de uma xícara de chá. Escorra e jogue as vagens na água fria, guardando o caldo do cozimento. Jogue fora as folhas externas duras de 3 alcachofras, depois ferva-as na água até que estejam quase cozidas, corte em quatro e retire o coração das alcachofras. Descasque 2 grandes tomates e aperte-os para retirar as sementes. Ferva 2 dúzias de mariscos e mexilhões até que suas conchas fiquem abertas; retire a carne, jogue fora as conchas mas preserve seu líquido.
Faça dourar, no azeite de oliva, 4 grandes pedaços de galinha, ou 8 pequenos, em uma panela redonda de paella. Retire os pedaços de galinha quando estiverem bem dourados. Frite uma cebola grande e 2 dentes de alho picados na mesma panela, juntando os pedaços dourados. Adicione 2 xícaras de arroz e 4 xícaras do caldo de cozimento das vagens e o líquido dos mariscos (acrescente água se necessário). Sal e pimenta a gosto. Adicione os pedaços de galinha, de tomate e de alcachofra, misturando todos os ingredientes.
Deixe cozinhar em fogo baixo, sem tampar a panela ou mexer nos ingredientes. Quando o líquido tiver quase todo evaporado, adicione com cuidado os mariscos, mexilhões e as vagens. O arrroz estará pronto quando todo o caldo evaporar-se. Jogue por cima tiras de pimentões vermelhos e verdes depois de levemente fritos no azeite. Sirva na própria panela.
Tartes de confitures a la Marie Laurencin
Faça uma patê brisée esmagando com um garfo 300 gramas de manteiga sem sal gelada junto com 3 xícaras de farinha de trigo e 2 colheres de chá de sal e ¼ de colher de chá de açúcar. Quando a mistura tiver adquirido a consistência de um mingau de aveia, adicione ¾ a uma xícara de água gelada formando a massa. Enrole a massa em bolas, cubra com papel encerado e deixe descansar na geladeira por pelo menos 30 minutos. Mantendo a massa fria e trabalhando rápido, estique-a com um rolo até ficar com 1 centímetro de espessura e deite-a em fôrmas individuais de tartelettes. Devem ser amassadas em toda sua extensão com um garfo e recheadas com feijões secos para a massa não sair do lugar enquanto forem assadas. Pré-aqueça o forno até 160°C e deixe-as assando por 10 ou 15 minutos. Retire-as do forno, remova-as da fôrma e deixe esfriar numa bancada.
Para cada uma das tartelettes escolha um ou mais tipos de frutas em compota sem calda (cereja, damasco, pêra ou abacaxi) ou frutinhas frescas como morango, amora e framboesa, arrumando-as dentro da massa já assada. Esquente uma calda de geléia de damasco passada na peneira e cubra o recheio com uma fina camada dessa calda.
In: RODRIGUEZ-HUNTER, Suzanne. Achados da Geração Perdida – Receitas e Anedotas da Paris dos Anos 20. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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