Minha
querida maçã louca,
Não
lembro quando te vi pela primeira vez, sei que já tinha ouvido falar de você, que
você era amarga, muito ruim mesmo.
Você me
apareceu à milanesa, era assim que te conheciam por lá. Lembro de algumas
rodelas tão finas, que só serviam para dar forma à casca de ovos e farinha.
Não dei
ouvidos às más línguas e me apaixonei. Estreitamos nossa relação e você se
despiu da casaco pesado do empanamento, e me mostrou sua cor púrpura majestosa,
a textura suculenta de sua carne e o leve picante das suas sementes.
Comecei
te cobrindo com molho de tomate e queijo. Aprendi que, em tiras, se você se
misturasse no calor do forno com tomates, pimentões e cebola, todo mundo
besuntado de óleo, você fica muito feliz com todos os outros, descansando na
geladeira em seus sucos misturados.
Aprendi
seu nome em várias línguas: berinjela, aubergine, eggplant, nassu, berenjena,
melanzana, patlican.
Começamos
com variações dos preparos para camas de pães: a caponata siciliana, a
ratatouille francesa, ficamos um bom tempo só no babaganoush, onde aprendemos o
que é o retrogosto, o bafo defumado no nariz.
Eu ia
comentar sobre a nossa inocência daquela época, tínhamos tanto pra aprender!
Mas afinal foi recentemente que nos maravilhamos novamente ao conhecer a
conserva siciliana onde você permanece crua — e isso traz à tona o seu sabor
mais pungente, próximo do picante. Ainda temos tanto a aprender, que bom.
E o dia
em que te encontrei cristalizada no balcão de sobremesas!
Aprendi
que se você chorar fica mais resistente. Me desculpe, é a única maneira de preparar
os rolinhos hipnóticos.
Meu amor,
preciso perguntar sobre amargor que querem tirar da sua carne. Eu não entendo.
Você só se mostrou amarga para mim quando, irresponsável, deixei o cozimento
passar do ponto. Por um tempo suspeitei que fosse algum preparo de panela, em
que você absorvesse mais na água do que os óleos que tanto amamos. Mas lembra
daquele curry indiano? Eu preparei com receio de que você não fosse gostar da
umidade da panela e que se vingaria produzindo o tal amargor. Você se lembra? Eu
que sempre preferi te vestir com mantas marroquinas, cujas especiarias me
parecem mais delicadas, onde temos mais brincadeiras com as texturas: amêndoas,
cardamomo deixados com pedacinhos. Vizinhas batendo à porta perguntando sobre o
seu perfume.
Sim, o
preparo da mussacá também envolve bastante umidade durante o tempo de forno,
mas nessa altura do processo você já foi grelhada ou frita. Na primeira vez foi
frita. Frita mesmo, em imersão em azeite de oliva — direitinho como mandava a
receita do livro novo de receitas gregas — assim como as batatas e as
abobrinhas que participam do preparo. As fatias deixavam uma poça de gordura no
prato, mas foi paixão imediata! Hoje a gente tem um preparo de mussacá que é só
nosso, e também por isso abandonamos a transcrição fonética inglesa, mais usada;
em português ela deixa bem claro: é à nossa maneira, enxuta! Ninguém aguenta
ingerir tanto óleo!
Que
mentira! A nossa nova paixão chinesa também leva um fio quilométrico de óleo. E
também se usa a tradução inglesa do nome: fish fragrant eggplant. Pensei
que o preparo pediria alga pra dar cheiro de peixe do nome do prato e no fim é
um prato temperado com os mesmos aromáticos que perfumavam as receitas de peixe
daquela região. Como você riu! Quantas vezes a gente repetiu essa receita em
poucos dias? E quantas voltamos a repetir quando finalmente chegou pelo correio
o vinagre e o molho de pimenta com feijões fermentados que fizeram a gente
chorar de comoção com um sabor que nutre até a alma?
Chegando
o verão, porém, simplificamos. Trocamos pelo figurino japonês em que você tem a
casca desenhada em losangos e sai, do cozimento no vapor, para um molhinho de
shoyu, óleo de gergelim torrado, vinagre de arroz, gengibre e cebolinha, e fica
na geladeira ali marinando, macia e ácida. Na mesma linha, o preparo com missô,
que parece estar na moda.
Nem mencionei os temperos da
Turquia, onde você se dá tão bem, ou as massagens com pesto genovês, mas como
te chamam os árabes, al-bãdinjãnâ, o ovo do gênio, de onde não param de
sair tesouros.
Obrigada por estar na minha vida.
Da sua,
Aline